sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Urinando sobre as nossas cabeças



A sensibilidade contemporânea foi em grande parte anestesiada pela naturalização midiática da violência social e política. Imagens e relatos burocratizados descarnam corpos e estatísticas de sua história e humanidade. Intencional ou não, o mecanismo dissolve a fronteira que separa a vítima do algoz. Mesmo o sangue, assim derramado, não deixa espaço para suas causas seminais. Às vezes um ruído cênico sacode a monotonia. 

Risos sobre cadáveres, por exemplo. Soldados urinando sobre corpos sem vida. Vozes celebrando a 'chuva dourada' em corpos cinzas. Foi o que fez um vídeo postado no YouTube, nesta 4ª feira, em que mariners brancos, jovens, alegres aliviam suas bexigas e a humanidade que lhes resta sobre talibãs mortos a seus pés (http://www.liveleak.com). Um carrinho de pedreiro ao lado dos corpos, despejados com alguma simetria, e a sincronia real ou simulada das bexigas, sugere que a exibição teve o dedo de um cenógrafo cuidadoso. 

O virtuosismo amador ganhará seu minuto de glória para sucumbir em seguida no fluxo que já tragou outras cenas de horror. As fotografia vazadas de Abu Ghraib em 2004 e 2006, por exemplo; as fotos reveladas pela Der Spiegel, em março de 2011, em que soldados igualmente jovens, posam sorridentes segurando cabeças de afegães abatidos como se fossem troféus de caça; ou ainda a esquecida humilhação de prisioneiros em uniforme cenoura, encapuzadas e enjaulados de joelhos na base militar dos EUA, em Guantánamo, sem direito a julgamento, sem comprovação de crime, sem prazo para sair do limbo jurídico. 

O buraco negro da monotonia ensandecida poderia ser sacudido se o conformismo midiático desse à perversão a sua contrapartida racional. Humanos são feitos de razão e circunstâncias. As circunstâncias desse desfrute de impunidade tem sua origem institucional no arbítrio de um poder que reafirma sistematicamente seu direito imperial de decretar o estado de exceção a um planeta reduzido à condição de fronteira estendida de seus interesses. Foi o que reiterou o simpático Barack Obama na nebulosa dispersão do último dia de 2011. 

Horas antes de embarcar de férias ao seu Havaí natal, o democrata eleito com a promessa de fechar Guantánamo, revalidou o Ato de Autorização de Defesa Nacional. Na essência, o mesmo sancionado por Bush, há dez anos, que 'legaliza' a existência do campo de concentração e proíbe o ingresso de seus prisioneiros ao território americano, impedindo-os de desfrutar do direito a habeas corpus, do veto a prisão sem evidencia formal de crime e outros marcos de legalidade que distinguem uma democracia de um estado de exceção. 

Dias depois, em cinco de janeiro, o mesmo Obama anunciaria cortes no orçamento da defesa compensados, como advertiu, pela ênfase em operações secretas. Leia-se: atos de sabotagem, guerra cibernética e ataques fulminantes a alvos específicos. A julgar pelos assassinatos em série que já mataram quatro cientistas ligados ao programa nuclear iraniano, vetado pelo Império, a nova doutrina tem eficácia comprovada. 

O alívio aterrador de bexigas militares sobre cadáveres talibãs ampara-se em precedente institucional à altura: o jorro contínuo de cinismo institucional despejado pela grande bexiga do norte nas nossas cabeças.

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