terça-feira, 27 de dezembro de 2011

CRÔNICA - Amizades vivas

Amizades vivas

Domingos Pellegrini 

Encontrei o Zan no velório do Lan, e rimos da rima. Depois ficamos olhando o caixão

, e Zan falou, pois é:

– O Lan era mais novo que eu e...


Rimos de novo, e então chegou o Chico, que a gente não via desde o velório do Tonho. Pois é, falei, a gente só se vê em velório...Ainda bem que não é uma fila, falei, é uma loteria. E podia ser pior: a ordem podia ser pela rima...
Daí chegou o Valter, cumprimentando friamente, mas o Valter sempre foi meio arredio antes do segundo copo. Rimos lembrando de suas famosas bebedeiras, ele ouviu silencioso e depois disse que hoje só pode beber água.
– E sem gelo.
Zan disse que é uma pena a gente nunca mais ver o Valter 2, aquele palhaço em que o Valter se transformava depois do segundo copo. Valter continuou olhando o caixão.
Chegou o Irineu, que tem esse nome mas é nissei; e, depois de olhar o Lan, disse que tinha uma ideia para depois do enterro:
– Vamos beber saquê, eu convido.
Enterramos o Lan, debaixo de um sol de pingar suor do nariz, depois fomos para a mercearia do Irineu. Ele disse à mulher para tomar conta sozinha, ele estaria se dedicando a reavivar amizades, e cortou pepinos, tomates e salsão, temperou só com sal e azeite, “por recomendação médica”. Botou uma mesa com cadeiras na calçada e abriu duas garrafas de saquê. Perguntamos porque duas, ele apontou o Valter, que repetiu não beber mais, mas pegou uma dosinha “só pra experimentar”.
Quando virou Valter 2 depois da segunda dose, passamos a rir tanto que os fregueses da mercearia estranhavam, a mulher de Irineu passou a chiar com o dedo sobre a boca. Até que Irineu falou ô, Kimiko, para de chiar, você não é panela de pressão!
Valter 2 caiu da cadeira de tanto rir, coisa que o Valter jamais faria. Então rimos mais ainda, e um vizinho olhou de uma janela, Irineu chamou para ajudar. Ajudar no quê, perguntou o vizinho lá da janela, Irineu respondeu brindando:
– Ajudar a enterrar a tristeza!
Rimos mais e mais, até bater aquela tristeza que dá em quem ri demais. Ficamos de olhos úmidos lembrando dos sargentos do Tiro de Guerra, dos professores da universidade, quase todos mortos. Zan imita vozes, e imitou a voz de cada um quando a cada um brindamos, aí conseguimos rir chorando ou choramos rindo, as caras lambuzadas feito crianças.
Chico lembrou das colegas de universidade, aquela que foi miss e depois enfeiou, aquela que ia ser freira e se tornou delegada de polícia, aquela que parecia talhada para solteirona e está no terceiro casamento. Chico brindou:
– A aquela bonitona e inteligente com quem me casei...
Tocou seu celular, era a bonitona inteligente mandando ele voltar pra casa. Mas, meu bem, ele começou a argumentar, ela desligou, ele levantou.
– Mas a gente se revê logo, né?
É, dissemos em coro:
– No seu velório!
Depois um a um todos se foram, chamados pelo celular ou pelas horas, até que ficamos só eu e Irineu. Perguntei quantos anos ele achava que viveria, ficou olhando longe antes de responder:
– Meu avô samurai morreu com oitenta e sete.
Falei que meus avós morreram também com mais de oitenta. Então, falou Irineu, nossa disputa não vai ser na dezena. Rimos, tomamos o resto de saquê por uma questão ecológica, contra o desperdício, e chamei um táxi, para não ter de explicar numa blitz:
– Eu estava num velório antigo, “seo” guarda
.


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