SP: O ESPÍRITO DE 32 EM 2014
A alta finança hoje é a cafeicultura do século XXI. Vencê-la implica desmontar sua dominância sobre o desenvolvimento. E romper limites impostos à democracia.
por: Saul Leblon
O PSDB governa o Estado de São Paulo há 20 anos.
Mário Covas foi eleito governador em 1994, seis anos depois de criada a sigla que completa 26 anos de existência neste 25 de junho.
Geraldo Alckmin, o plantonista atual do bunker concorre à reeleição em outubro, depois de ter participado diretamente de quatro das cinco gestões tucanas no estado.
Alckmin foi vice de Covas em 1994 e 1998.
Em 2001 assumiu o governo com a morte de Covas.
Emendou o terceiro ciclo à frente do estado em 2002, eleito governador.
Feito que repetiria em 2010.
Está na sua quarta passagem pelo poder, que encerra pleiteando a reeleição para um 5º mandato em outubro.
No interregno de 2006 a 2010, quando não esteve diretamente no comando do governo, Alckmin assumiu a secretaria de Desenvolvimento do estado na gestão Serra.
Duas décadas no poder e 44% de intenções de voto para o pleito estadual de 2014, (a se dar crédito ao Datafolha do último sábado), não é algo que se possa menosprezar.
O desconhecimento em relação aos demais candidatos pesa significativamente a favor de Alckmin.
Padilha (PT) é um nome novo na política.
O fato de estar há tanto tempo no rodízio dá ao tucano uma aura de ‘normalidade’ em tempos de sobressalto e inquietação.
O sentimento, porém, possivelmente fosse o oposto, se o dispositivo midiático conservador não tornasse difuso aquilo que é estrutural.
Ou seja, as duas décadas de autodeclarada proficiência administrativa do PSDB em São Paulo não se traduziram em bem-estar social efetivo para o conjunto dos paulistas.
Na realidade, elas refletem mais a conveniência da plutocracia brasileira, que fez do estado sua linha Maginot, do que a consagração de uma obra democrática.
Em parte, é o que explica a renitente presença desse insípido, mas fiel gerente do comodato do dinheiro grosso no poder estadual.
Nenhum outro quadro dirigente do PSDB de São Paulo esteve tão presente no ciclo de escândalos da Alstom, marca registrada do caixa 2 tucano na gestão do metrô paulista, quanto Geraldo Alckmin.
A julgar pelos relatos do próprio oligopólio associado às encomendas do metrô, o intercurso entre o cofre das empresas e o caixa pessoal e coletivo do tucanato começou em 1998, quando ele era vice de Covas.
E não parou mais de fluir.
Entre 1998 e 2001 sabe-se, graças às investigações realizadas pelo Ministério Público da Suíça, que pelo menos 34 milhões de francos franceses foram pagos em subornos a autoridades tucanas, na lubrificação de contratos do metrô.
Com a morte de Covas, em 2001, Alckmin assumiu o comando desse comodato. E se manteve à frente dele até 2006.
Seria injusto atribuir-lhe a exclusiva liderança do processo.
No período de negociação de alguns dos grandes contratos de transporte e energia o então genro do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, David Zylbersztajn, dirigia a pasta de energia da gestão Covas e Alckmin (deixou o cargo em janeiro de 1998 para assumir a direção geral da Agência Nacional do Petróleo).
O serrista Mauro Arce comandava a de Transportes. Andrea Matarazzo bordejava o circuito.
Assim por diante.
Nada disso retira de Alckmin o que é de Alckmin.
Um contrato de R$ 223,5 milhões com a Alston, para a compra de 12 trens, foi assinado em 28 de dezembro de 2005.
Sem licitação.
Alckmin era o governador.
Um total de 139 contratos assinados entre a Alstom e o Governo do Estado de São Paulo nos últimos anos (governos Serra e Alckmin) ,no valor de US$ 4,6 bilhões, está sob suspeita.
As investigações na justiça paulista se arrastam, em que pese o esforço solitário do ministério público suíço.
Sempre discreto, semi-invisível tanto quanto a obra, Alckmin é um dente da engrenagem que move os interesses comuns do dinheiro e do PSDB no grande diretório do capitalismo brasileiro em que se transformou o aparato estatal bandeirante.
A dissociação entre esse aparato e o interesse público pode ser medida pelo hiato entre as promessas do tucano na campanha vitoriosa de 2010 e o saldo efetivo deste final de mandato.
Alckmin entregou então aos paulistas um compromisso sortido, cravejado de números suculentos.
Entre eles, o de construir 150 mil moradias, promover um salto no transporte público e na saúde, construir 12 piscinões em São Paulo etc.
Quatro anos depois, sobrou o quê?
Em janeiro de 2014 Alckmin comunicou que mudara de ideia em relação aos piscinões.
Desistiu, alega, a partir de cálculos hidrológicos que indicariam a suficiência de uma ‘otimização’ das instalações existentes.
Dos 12 piscinões prometidos, três foram feitos, outros dois estão em obras.
A meta de oferecer 150 mil moradias às faixas de renda mais pobres ostenta frustração igualmente grave.
Em 2013, a construção de unidades populares pelo governo estadual registrou queda de 80% na capital.
Isso num ano em que explodiram as ocupações de edificações públicas e privadas pelos sem-teto na cidade.
Das 150 mil unidades previstas, seu governo entregou até agora 55.483 moradias.
Estamos falando da prioridade habitacional do PSDB no estado mais rico da federação, que tem um déficit de 1,11 milhão de moradias –o maior do Brasil em termos absolutos.
Mesmo no confronto com seus pares, o desempenho de Alckmin é derrisório.
Em 1998, por exemplo, o então governador Covas (PSDB) construiu, no ano, o equivalente próximo da marca que Alckmin atingirá ao longo de toda a sua quarta passagem pelo Estado (52.167 unidades).
Na área da saúde é sugestivo dizer que São Paulo receberá um dos maiores contingentes do Programa Mais Médicos: 1.279 profissionais vão atender a 7,2 milhões de moradores desassistidos do estado.
O corolário do modo Alckmin de governar é o atual uso do ‘volume morto’ do sistema Cantareira –último recurso antes do racionamento oficial , presente na vida cotidiana de vários bairros da capital.
São Paulo vive a estiagem mais severa desde 1930. Ademais da exacerbação climática, porém, há o efeito cumulativo da contradição estrutural entre a lógica do poder bandeirante e as questões do interesse coletivo.
O abastecimento de São Paulo se apoia no mesmo fluxo de mananciais interligados ao final da década de 70, meados dos anos 80.
A população de São Paulo dobrou no período.
Nas últimas duas décadas, a curva demográfica conviveu com administrações que não se anteciparam ao colapso implantando a infraestrutura capaz de evitá-lo.
O flanco do abastecimento de água foi escancarado pela estiagem.
Outros, de gravidade equivalente, caso da mobilidade urbana simbolizada na expansão de um metrô que se arrasta como uma lesma, ou do déficit habitacional, para não citar o desempenho constrangedor da rede estadual de ensino, inscrevem as marcas da ineficiência no cotidiano sofrido da sociedade.
São Paulo tem 3% do território brasileiro, 22% da população e 33% do PIB nacional.
Há 84 anos, no bojo de uma crise mundial capitalista , que esfarelou os preços das matérias-primas e destroçou a inserção brasileira no mercado mundial, o poder da oligarquia paulista foi afrontado por Vargas.
A política centralizadora e industrializante de Getúlio sacudiu o chão das oligarquias estaduais, especialmente o da mais sólida delas, em São Paulo.
O governo Vargas reconheceria oficialmente os sindicatos dos operários, legalizaria o Partido Comunista e adotaria uma política de direitos e valorização do salário dos trabalhadores.
O amparo de Getúlio à cafeicultura, com a política de compra e queima de estoques, combinou-se com um manejava do câmbio, de forma a capturar um pedaço da receita exportadora, como se fora um imposto sobre as vendas do setor.
O circuito do dinheiro, o quanto, como e onde aplicar deixou de ser prerrogativa exclusiva das elites paulistas e assemelhadas.
A sublevação de São Paulo em 1932 refletia esse desacordo travestido de ideais liberais democráticos.
A tentativa derrotada de 1932 iria se repetir ao longo da história.
Sempre que um governante tentou sobrepor os interesses gerais do país à lógica do dinheiro graúdo concentrado em São Paulo, a elite local reagiu.
São Paulo perdeu importância produtiva desde então, mas se mantém como o bunker financeiro do capitalismo brasileiro.
A alta finança é o café atual.
O que significa, paradoxalmente, deter um poder de fogo em relação à esfera federal e ao resto da economia muito superior ao disponível no ciclo da cafeicultura e mesmo no seu auge como ‘a fábrica’ do país.
Para a plutocracia paulista e parte da classe média ter um governante do PSDB à frente do aparelho de Estado não é uma questão da democracia, mas de fortificação de uma trincheira desse privilégio.
O governo Vargas, apesar do levante de 1932 – esmagado em três meses– sustentou uma política de compromisso com os grupos cafeicultores, garantindo-lhes uma taxa de retorno em plena crise mundial.
Mutatis mutandis, os governos do PT fizeram o mesmo ao garantir ao setor industrial paulista, e à banca aqui centralizada, uma demanda aquecida por bens de consumo e crédito, em pleno colapso da ordem neoliberal no mundo.
A exemplo do que ocorre hoje, nem por isso a oligarquia de São Paulo deixou de conspirar contra Vargas e contra a lógica de desenvolvimento que ele personificou.
Trinta e dois anos depois de 1932, ela conseguiria finalmente, em março de 1964, atingir seu objetivo: abortar as fundações de uma democracia social no país que subtrairia o seu mando o sobre o dinheiro e a nação.
Em 1964, os vapores constitucionalistas de 32 revelariam sua frágil densidade liberal.
Sobreveio em seu lugar uma ditadura feroz, que derrubou um governo legitimamente exercido por um Presidente reformista e democrático.
Essa mesma lógica explica por que –mesmo menosprezando Alckmin—essa mesma elite hoje cerra fileiras na sua reeleição.
Poupando-o do que efetivamente significa em termos de mediocridade administrativa.
E esbanjando complacência diante de seus vínculos incontornáveis com a malversação tucana dos fundos públicos em São Paulo.
Quem já sobrepôs a baioneta ao voto para defender seus interesses de classe não vê dificuldade alguma em dar a esse rebaixado funcionário um quinto ciclo à frente do comodato de negócios que se incrustou no poder público estadual.
Vencer esse arranjo de forças encastoado em São Paulo vai além das urnas.
Requer, simultaneamente, desmonta-lo na dimensão superior do seu poder.
Vale dizer, na dominância financeira sobre o desenvolvimento brasileiro.
E nos limites estreitos impostos ao exercício da democracia e ao fluxo da informação no país.
Essa dimensão do poder paulista será enfrentada no escrutínio presidencial de outubro.
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