domingo, 8 de junho de 2014

Manual de canalhice da mídia

A Copa das não-notícias


A grande mídia esperou até o último instante, aguardando talvez alguma “bala de prata” que prejudicasse, suspendesse ou, no mínimo, colocasse em xeque a realização da Copa do Mundo no Brasil. Um evento que se tornou uma verdadeira dor de cabeça para uma mídia que assumiu explicitamente a oposição política. Mas a Copa vai começar e agora nada pode passar impune: uma nova etapa da guerrilha semiológica iniciada no ano passado se inicia. A pauta negativa, “recomendação” interna da TV Globo para todos os jornalistas na cobertura da Copa, revela uma novidade no paiol das bombas semióticas: a não-notícia. Produto das revistas de celebridades e das coberturas esportivas extensivas como Olimpíadas e Copa do Mundo, elas agora estão sendo turbinadas politicamente por meio de duas estratégias semióticas: fazer o espectador confundir causa e efeito dos acontecimentos e a armadilha da generalização nas indefectíveis enquetes.

Desde as grandes manifestações de junho do ano passado, a grande mídia (que de início execrou como vandalismo e infantilismo político para, logo depois, procurar inseri-las no plot narrativo da oposição na proximidade de ano eleitoral – mensalão, PEC 37 etc.) mobilizando uma pesada artilharia semiótica de construção de textos e imagens que sintetizem em um frame, fotograma, parágrafo, legenda de foto etc. um conjunto de percepções e fragmentos ideológicos. Chamamos esse arsenal de recursos retóricos e semiológicos de “bombas semióticas”.

Desde junho do ano passado uma variedade
de bombas semióticas assolaram
a opinião pública
Ao longo desse período detectamos diversos tipos de bombas:dessimbolizaçõesinfotenimentoa black bloc good bad girlfotos-choques,cavalos de Tróiaguerrilha de memes,exploração fetichista de animais e mulherestomates e inadimplência. Isso sem falar de acidentes com jornalistas no momento em que montavam bombas como, por exemplo, o caso da bomba semiótica do Enem ou a “barrigada” darepórter da rádio CBN que via no campus da USP mensagens cifradas análogas às do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Essa variedade de bombas semióticas teve um objetivo em comum: manter a opinião pública em estado de constante tensão em um País supostamente à beira do abismo econômico e em situação pré-insurrecional.

Mas agora quando a agenda nacional passa a ser dominada pela Copa do Mundo, entra em cena uma nova bomba semiótica: a da não-notícia. A grande mídia caiu em si que não só vai ter Copa, mas como também manifestações de protestos podem ficar isoladas ou, no mínimo, deslocadas na opinião pública em relação ao evento esportivo internacional.


Por isso, entra em ação a pauta negativa da cobertura da Copa para comprovar para todos que será um fracasso de gerenciamento, administração e organização. O problema é que os estádios ficaram prontos, as seleções chegam ao país sem atropelos ou gafes organizacionais. Alguns até elogiaram a rapidez dos serviços de aeroportos... – sobre isso clique aqui.

“Eu crio as circunstâncias”


Mas a pauta negativa tem que se impor e os pobres repórteres têm que exercer toda a sua criatividade na angulação das matérias, na edição das declarações, no enquadramento da fotografia etc. – como ficou evidente no memorando interno da TV Globo para os editores evitarem a pauta positiva na Copa – clique aqui. No início procuraram fazer a coisa mais óbvia: concentrar-se em um mínimo defeito como o vazamento do banheiro, a escada rolante quebrada, a conexão da Internet que é instável no estádio e assim por diante.

Porém, isso não era impactante o suficiente. Principalmente porque a estrutura da Copa começa a funcionar, para contrariedade da grande mídia.

E então, o que fazer? Como dizia Napoleão: “Circunstâncias? Eu crio as circunstâncias”. Se as notícias negativas escasseiam e as angulações não são mais o suficiente, criam-se não-notícias: repercutir um fato que a própria emissora criou, a partir de um episódio cuja causalidade é absolutamente banal ou natural. Repercutida com as devidas estratégias de retórica, o episódio toma ares de denúncia e furo de reportagem.

Um exemplo dessa nova bomba semiótica pode ser acompanhada na edição do jornal Estado de São Paulo de 05/06 na primeira página do caderno especial sobre a Copa 2014 - veja foto ao lado. Somos impactados com as letras garrafais “Frustração” sobre uma foto que ocupa mais da metade da primeira dobra onde vemos uma confusão de pessoas em uma espécie de fila desorganizada. Acima, nas chamadas de matérias internas, mais desalento: “Ruas sem enfeites” sobre um suposto desinteresse dos moradores enfeitarem casas e ruas com as cores nacionais; e “Sinal Amarelo” sobre um suposto jejum de gols do centroavante Fred que preocuparia – para contrariar a pauta, Fred fez o gol da vitória no amistoso contra a Sérvia na sexta-feira.

Na matéria principal, a perfeita não-notícia. O foco da matéria é “frustração” e “confusão” na venda de ingressos do último lote oferecido pela FIFA. Descreve que em uma hora os ingressos para os jogos principais foram vendidos no site da entidade. Fala em “fila virtual” e “dificuldade em acesso”. E quem foi ao Ibirapuera enfrentar a fila, descobriu que só restavam ingressos para os jogos “menos atraentes”. Pergunto ao leitor: onde está a notícia? A frustração e a confusão foram causadas por uma grande demanda de busca por ingressos como ocorre em qualquer grande evento, da Copa do Mundo a São Paulo Bike Tour, onde o site desse evento ficou congestionado de acessos de ciclistas tentando ganhar uma bicicleta promocional.

Ou o que dizer então da verdadeira obsessão da TV em postar uma câmera na entrada dos torcedores tanto no estádio da Arena Corinthians como no jogo em Feira de Santana Santos X Bahia para mostrar as filas como um sintoma natural da desorganização tanto do futebol brasileiro como na Copa como fenômeno de contágio. Ora, se todos chegam ao mesmo tempo formar-se-ão filas.

"Parceiro" do SPTV: a não-notícia do
congestionamento
no entorno da Arena Corinthians
Outra não-notícia observamos na edição de 05/06 na edição do SPTV quando o telejornal mobilizou “parceiros” da Zona Leste - reportagens feitas por moradores de diferentes regiões de São Paulo supervisionadas por jornalistas da emissora. “Chegada à Arena Corinthians causa congestionamento”, dizia o repórter-parceiro que tentava chegar ao estádio de carro. No final da matéria, informava que a CET havia recomendado aos torcedores irem ao jogo através de transporte público, evitando os carros. Então, qual era a notícia? A matéria apenas confirmava o que a engenharia de tráfego tinha informado no dia anterior.

Mas, com a câmera no interior do carro no estilo “por dentro da notícia”, a matéria adquiria um tom de “denúncia” e “flagrante”. Estratégia retórica para turbinar a não-notícia.

A semiótica da não-notícia


Nas suas origens, a não-notícia é um produto direto daquilo que se chama infotenimento (informação + entretenimento), uma combinação entre as hard news(informação mais “seca”) com estilo narrativo e retórico que beira o ficcional e produz entretenimento. O crescimento e a complexidade industrial das mídias exige uma sociedade “acontecedora” que produza um fluxo constante de acontecimentos para produzir notícias e espaços editoriais que justificam a inserção dos anunciantes.

Origens das não-notícias em eventos extensos
como Copa do Mundo e Olimpíadas
Ela é o produto direto das revistas de celebridades, sejam esportivas, artísticas, empresariais ou políticas. Principalmente em coberturas tão extensivas como Copa do Mundo e Olimpíadas onde jornalistas, obrigados a fazerem muitas entradas ao vivo, criam verdadeiras não-notícias: jornalista entrevistando outro jornalista, jornalista brincando ou fazendo apostas com jogadores  (na Copa de 90 o repórter Elia Junior da Band chegou a fazer cobranças de pênaltis no goleiro Taffarel) etc.

Porém, a bomba semiótica da não-notícia mobilizada para as coberturas da Copa acrescenta um fator semiótico inédito: fazer o leitor/espectador confundir causa com efeito. Causas como grande a concentração simultânea de torcedores ou a opção em privilegiar transporte público em detrimento dos carros transformam-se em efeitos de desorganização da logística do evento. Ou o inverso: “filas virtuais” e “físicas”, efeitos do excesso de procura de um bem escasso e valioso (os ingressos) transformam-se em causas de “frustrações”.

Acabar ingressos dos principais jogos devido a grande demanda é um fato banal e previsível numa economia regida pelas leis de oferta e procura. Mas a retórica visual da não-notícia (câmeras que tremem, grande concentração de torcedores, a presença normal de policiais militares, a qualidade da imagem precária como fossem produzidas por celular) esquenta a não-notícia, criando uma simulação de hard news.

Generalização potencializa a não-notícia


Pessoas não querem decorar ruas na Copa
com medo de manifestantes?
Na primeira página do caderno do Estadão citado acima chama a atenção para uma outra estratégia de potencialização da não-notícia: a generalização. “Ruas sem Enfeites” é uma matéria feita a partir da “metodologia” das enquetes, técnica sem nenhum pressuposto científico (amostragem, universo, tabulação etc.) que parte de um axioma que o jornalismo toma como inquestionável: todos têm uma opinião formada sobre qualquer coisa.

A matéria parte de duas constatações opostas em um mesmo bairro: ruas com decorações e sem decorações sobre a Copa e a seleção brasileira. E o “caso” de um morador que não fez a tradicional decoração por “medo de manifestantes” e “frustração com os governantes”.

O sociólogo Pierre Bourdieu em um texto clássico chamado A Opinião Pública Não Existe desconstruía os três pressupostos das pesquisas de opinião: todos têm opinião; todas as opiniões têm valor; há um consenso em torno do problema formulado pela questão. No caso das chamadas enquetes jornalísticas, esses pressupostos ficam ainda mais discutíveis por tenderem à generalização do tipo “todos os brasileiros” ou “a maioria dos moradores” etc.

A óbvia não-notícia (há ruas em São Paulo que estão decoradas com motivos da Copa e outras não) é esquentada repentinamente pelo salto brusco da generalização com a expressão “no caso do morador...” como fosse um exemplar de um conjunto sobre a qual o texto nada diz e não fornece nenhum dado quantitativo (percentual, soma absoluta etc.). E se pensarmos bem, a própria opinião do morador é uma não-notícia: aleatória, casual, assim como uma conversa rápida de elevador.

Talvez a notícia da matéria esteja em outro lugar, nela mesma: na verdade ela representa um ato falho, um desejo do próprio veículo para que não haja decorações em São Paulo. É o fenômeno da chamada “profecia autorrealizadora”: se todos acreditarem que ninguém está enfeitando as ruas de São Paulo, logo todos não enfeitarão nenhuma rua.


A bomba semiótica da generalização da não-notícia não é voltada para a informação, mas para a percepção, a moldagem do “clima de opinião”. A opinião do morador que se diz com medo de enfeitar a rua por causa de uma possível ameaça dos manifestantes é um modelo ardiloso de moldagem da opinião pública por meio daquilo que a sociologia chamou de “espiral do silêncio”: sentindo-se em minoria, o indivíduo se rende a uma imaginária maioria, criando-se um consenso autorrealizável. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário