A conspiração
Enviado por Miguel do Rosário
O papel da mídia
Uma das virtudes fundamentais no espírito de um jornalista é a ojeriza a teorias de conspiração. É uma virtude, no entanto, que beira um vício, porque o mesmo pensamento racional, a mesma objetividade, que nos aconselha a manter distância de discursos paranóicos e teorias de conspiração, nos obriga a aceitá-los quando estamos diante de documentos e provas irrefutáveis.
A divulgação de milhares de documentos secretos da diplomacia norte-americana, pelo Weakleaks, consistiu, por exemplo, numa inesquecível vitória moral para milhares de pessoas que acusavam, há décadas, os EUA de promoverem golpes de Estado em países do terceiro mundo. Na época, um divertido argumento fez sucesso nas redes sociais: “sabe aqueles malucos que viviam culpando a CIA por tudo? Estavam certos.”
A bem da verdade, não foi apenas o Weakleaks. Algumas leis que obrigam a divulgação de documentos do governo americano com mais de trinta ou quartenta anos, também ajudaram.
Mas ser jornalista não é dizer a verdade. Essa é a função, talvez, de filósofos. Jornalistas divulgam documentos e fatos concretos, e a verdade que buscam é apenas aquela que podem comprovar com base neles. O uso da lógica, porém, não é vetado aos jornalistas. Nem a imaginação, desde que usada com parcimônia.
No processo do mensalão, todavia, a imaginação se tornou a virtude fundamental do jornalismo político. Reportagens, colunas, análises, passaram a se descolar cada vez mais de qualquer prurido factual e inagurou-se uma nova era quase psicodélica na imprensa brasileira. Teorias eram montadas e desmontadas sem qualquer escrúpulo. O fato de inúmeras denúncias serem desmentidas no dia seguinte não tinha mais importância. Um clima de total liberdade de expressão enfim se instalara nas redações nacionais.
Quando os historiadores se debruçarem, daqui a alguns anos, sobre o mensalão, o tradicional rigor acadêmico possivelmente lhes obrigue a dividir o tema em várias seções: política, mídia, partidária, jurídica.
Em meu modesto esforço para escrever sobre um caso ainda em curso, e portanto ainda influenciado pelo clima barra pesada, sufocante, de tribunal, estamos tateando em todas as áreas, mas a corda que uso para não cair são documentos. Por isso tenho sido repetitivo quanto ao caso Pizzolato. É que me parece o caso mais surreal, kafkiano e… documentado. A sua inocência é documentada.
Se a grande mídia fizesse uma ampla reportagem sobre os erros na condenação de Pizzolato, mostrando os documentos, apresentando-os a juristas conceituados e pedindo sua opinião, testemunharíamos uma sumária desmoralização da Ação Penal 470. Aliás nota-se hoje um barulhentíssimo silêncio nos grandes jornais e nas redes de TV sobre o debate tão aceso nas redes sociais e blogs, sobre os erros do STF. A ruptura da mídia com a sociedade se tornou completa. O artigo da Inês Nassif, por exemplo, abordando a suja história do Laudo 2828, que inocenta Pizzolato, tornou-se imediatamente o mais lido em todos os principais blogs políticos no país, mas o assunto é virtualmente proibido na grande imprensa. A mesma coisa vale para o erro crasso de Barbosa quanto a data da morte de José Martinez.
A nossa presidenta gosta de repetir o clichê supostamente pró-democrático, sobre preferir o barulho da imprensa ao silêncio da ditadura. É uma frase bonita, mas a verdade é que o único barulho que a imprensa quer ouvir, no caso do mensalão, é o da tampa de um caixão se fechando. A nossa mídia não é boba. O espaço à divergência se dá apenas em questões não estratégicas. E o mensalão é um assunto absolutamente estratégico para os grandes grupos de mídia, que se tornaram, assumidamente, o grande partido do conservadorismo brasileiro.
Entretanto, mesmo durante o julgamento, quando o assunto ocupava, diariamente, várias páginas de jornal, e hegemonizava o noticiário televisivo, havia muitos mais fogos de artifício do que conteúdo. Não havia um debate sério sobre o tema. O tal “barulho da imprensa”, tão ao gosto da nossa chefe de Estado, era apenas um ruflar histérico dos tambores da oposição. Os réus, porém, não eram só aqueles perfilados na denúncia da Ação Penal 470, mas toda a sociedade, incluindo os elementos raivosos que pagavam anúncios no Facebook para promover páginas repletas de indizível rancor. Todos são vítimas do maior processo de manipulação da informação de que temos notícia.
O mensalão foi o canto do cisne da grande mídia brasileira. O escândalo é deflagrado exatamente no momento em que a internet ainda não havia sido “apropriada” pela sociedade. Os únicos blogs políticos estavam em mão da grande mídia de oposição: Noblat e Reinaldo Azevedo. A imensa ágora pública, caótica e democrática em que se tornou a internet brasileira não havia se constituído nos anos de 2005 e 2006. A imprensa reinava sozinha. Se hoje ela ainda tem um poder descomunal para influenciar o espírito nacional, naquela época esse poder era quase absoluto.
Uma das seções mais importantes no estudo do processo do mensalão, portanto, é o papel desempenhado pela mídia. É um papel que ainda está sendo desempenhado. Hoje, sexta-feira 07 de junho, uma notícia deixou inteiramente perplexos a grande nação de internautas: o único jornalista convidado pelo ministro Luiz Fux para dar uma “aula pública” aos ministros do STF sobre financiamento de campanha será Merval Pereira, colunista e membro do conselho editorial do jornal O Globo.
A promiscuidade entre a grande mídia, em particular a Rede Globo, e o STF, parece não encontrar limites. Até mesmo os juízes mais resistentes à pressão da mídia, como Lewandovski, ligavam para Merval, no dia seguinte a sessões, para “explicar” seus votos. Joaquim Barbosa, por sua vez, liga regularmente para Merval para justificar algum de seus destemperos.
E Ayres Britto escreveu o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão enquanto ainda era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)!
Se a mídia é um poder terrível em qualquer parte do mundo, uma concentração absoluta numa só empresa empresta-lhe um ar perigosamente antidemocrático.
A maior parte da “pressão social” alardeada pela grande mídia, e usada pelos próprios ministros do STF como justificativa para a incrível criatividade com que se portaram no julgamento da Ação Penal 470, a ponto de ser qualificado, de maneira promissoramente corajosa pelo mais novo ministro, Luís Roberto Barroso, de “um ponto fora da curva”, veio da Rede Globo. Com toda certeza, os ministros se portavam no tribunal com um olho não na população brasileira, não na História, mas em como seriam caricaturizados no Globo no dia seguinte. As notinhas de Ancelmo Gois sobre Joaquim Barbosa, alardeando sessões de aplauso no metrô de Ipanema e shows da Marisa Monte, e mencionando, orgulhosamente, a criação de um site para lançar a candidatura presidencial de Joaquim Barbosa, parecem ter surtido um efeito narcótico poderoso no espírito de todos os juízes. Da mesma maneira, a mesma mídia incitava agressões verbais ou mesmo físicas contra Lewandosvki, único ministro que ousou se contrapor, e mesmo assim timidamente, à agressividade inacreditável de Joaquim Barbosa.
No início do texto, eu falava na ojeriza à teorias de conspiração com importante virtude jornalística. Mencionei também que esta virtude pode se tornar um vício se nos recusamos, mesmo diante de evidências, em aceitar a existência de uma conspiração. O que vimos no processo do mensalão nos traz esse dilema. Todos os fatos, documentos, ações, discursos e posturas, apontam para uma conspirata política. Uma conspirata da qual participaram os dois procuradores gerais da república, Joaquim Barbosa, a oposição, a mídia. O próprio governo, vergado, intimidado, aterrorizado com a possibilidade de um golpe, talvez tenha pactuado, em parte, com tudo isso, sacrificando seus próprios companheiros em prol da sobrevivência. Enfim, estamos diante de um jogo político extremamente barra-pesada.
Mesmo com evidências, porém, este é um terreno que devemos trilhar com cuidado. Não podemos largar a corda que nos impede de cair no abismo. O mensalão ainda é uma história cheia de segredos, desagradáveis para todos os lados. É um processo e um julgamento ainda em curso. No próximo capítulo, faremos algumas incursões na seara propriamente política da nossa história, comentando seus desdobramentos presentes e futuros.
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