A QUEM CABE O PASSO SEGUINTE DA HISTÓRIA?
O economista Carlos Lessa costuma dizer que o Estado brasileiro inventou o keynesianismo em 1930, antes de Keynes, com Getúlio Vargas. O Brasil é uma criação do Estado, ironizava Celso Furtado sobre a esquálida capacidade de iniciativa da sempre festejada ‘iniciativa privada’. A verdade é que em praticamente todo os ciclos de crescimento coube ao Estado brasileiro determinar o nível de investimento, fixar prioridades, induzir e financiar a participação privada no arranjo macroeconômico. Por que seria diferente agora? Ou melhor, porque é tão difícil agora reproduzir a mesma alavanca, quando seu papel contracíclico mais que nunca é necessário face ao colapso da ordem neoliberal?
A interrogação perpassa o pacote de concessões de infraestrutura lançado pelo governo Dilma nesta 4ª feira. Nele alguns enxergaram ‘a rendição à lógica das privatizações’; mas há uma novidade importante.
Junto com investimentos da ordem de US$ 65 bi , a metade a ser ativada nos próximos cinco anos para deslanchar 7,5 mil kms de rodovias e 10 mil kms de ferrovias, a Presidenta Dilma anunciou a criação de uma estatal, a EPL , Empresa de Planejamento e Logística.
Caberá a ela, a partir de agora, a responsabilidade de: ‘ realizar estudos da logística brasileira, articular investimentos, constituir e estruturar projetos’.
Ou seja, formular um leque estratégico de possibilidades para que o governo possa atrair, induzir e coordenar a iniciativa privada e/ou estatal na execução de obras do interesse do país.
Por incrível que pareça, isso é novidade no Brasil do século XXI.
O que subsistia até agora eram planos episódicos, encomendas de interesses privados, visões fracionadas do país desenvolvidas em escritórios de grandes empreiteiras.Portanto, desprovidas da abrangência do interesse público, à margem da constituição de um quadro estatal de técnicos de alta qualificação, capazes de pensar o conjunto e o futuro brasileiro.
Nem sempre foi assim.
O Brasil já teve uma empresa de planejamento estratégico, o Grupo Executivo para a Integração da Política de Transportes.
Criado em 1965, o Geipot foi substituído em 1973 pela Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, não por acaso extinta no governo FHC , em 2002.
Antes de sermos brindados com a revelação da autossuficiência dos mercados, graça revelada pelos governos tucanos nos anos 90, prescindir do planejamento público era algo desconhecido entre nós.
A ordenação estatal foi decisiva na etapa de substituição de importações, incluindo-se os ‘50 anos em 5′ de JK, com suas 30 diretrizes articuladas em um Plano de Metas.
A 31ª meta-síntese era a construção de Brasília.Ponto de amarração sistêmico e logístico da malha de estradas voltadas para a interiorização e o desenvolvimento regional, cujo marco foi a criação da Sudene, em 1959, dirigida por Celso Furtado.
Mesmo durante a ditadura, que tutelou a substituição de importações na indústria de base, articulada a grandes obras públicas, os PNDs, planos nacionais de desenvolvimento, tiveram papel importante. O então BNDE e o próprio Ipea –que paradoxalmente abrigava intelectuais progressistas– foram núcleos pensantes desse processo.
Na tradição brasileira cada ciclo de desenvolvimento sempre teve a sua usina de refexão estratégica.
O vazio herdado dos governos tucanos –coerente com a ausência deliberada de projeto para o país– não foi superado até hoje de forma orgânica.
O ministério do Planejamento teve essa dimensão destruída e nunca mais recomposta.
A Casa Civil,com Dilma Rousseff no governo Lula, acumulou atribuições de planejamento estratégico e assim permanece até hoje.
É evidente que faltam braços,cérebros, estruturas e fôlego orçamentário para sair da improvisação, prever salvaguardas ambientais e até mesmo fiscalizar o que se licita, a tempo de evitar interrupções e gargalos inesperados.
O atraso desconcertante numa obra de baixa complexidade como a da integração da bacia do São Francisco –basicamente cavar canaletas, construir passagens de nível e concretar– é sugestivo de uma engrenagem travada.
Nos anos 90, o esgotamento das bases financeiras e políticas dos ciclos articulados em torno da coordenação estatal deslocou o pêndulo de forma drástica.
Saturada a capacidade de endividamento externo, que quebrou o país e resultou em dramático desequilíbrio fiscal, procedeu-se ao desmonte do Estado brasileiro. O ‘pensamento estratégico’ passou a ser função das ‘cartas de intenção’ impostas pelo FMI, com metas de arrocho para pagar os credores.
Ao ciclo de privatizações e liquidações de estatais –para honrar acordos e atrofiar o ‘gasto público’– correspondeu um desmembramento de estruturas e quadros que subtraiu ao aparelho público, deliberadamente,repita-se, a capacidade de pensar, coordenar, propor e debater com a sociedade os rumos do seu desenvolvimento.
Não é pouco o que se perdeu.
Tome-se o impulso industrializante representado hoje pelo investimento da Petrobrás no pré-sal. São US$ 236 bilhões até 2016. A exigência de conteúdo nacional saltou de 45% há 10 anos para 65% hoje. E vai aumentar.
Esta semana a Petrobrás e o BNDES lançaram um novo programa de financiamento de R$ 3 bi.O objetivo é rastrear e viabilizar novas oportunidades de produção nacional, que atendam a demandas ainda importadas.
Isso seria impossível se a Petrobrás não tivesse escapado de se tornar a Petrobrax tucana; assim como ficou inviável na área mineral com a privatização da Vale, por exemplo.
Quem não se lembra dos sucessivos e infrutíferos apelos de Lula ao então big boss tucano da Vale, Roger Agnelli, ‘o herói dos acionistas’, para investir numa fábrica de trilhos no Brasil –cuja demanda era e é atendida pela produção chinesa feita com minério de ferro brasileiro?
Mais importante que arguir a distinção entre concessão e privatização, como se empenham colunistas tucanos, seria refletir se a criação da EPL é suficiente para dar ao governo na área da infraestrutura, o mesmo torque indutor que a Petrobras lhe proporciona na esfera da energia.
Tudo indica que não.
Mas o passo dado não será irrelevante se corresponder a um salto efetivo de desassombro diante de um mundo que mudou.
O colapso da ordem neoliberal impõe uma profunda transformação na agenda do desenvolvimento. O Estado e o planejamento democrático –não aquele do autoritarismo– devem substituir a prerrogativa dos mercados desregulados na condução da economia e dos destinos da sociedade.
Não se trata de um cacoete exclamativo. Trata-se de substituir um tempo histórico por outro. Requer, entre outras coisas, repactuação de forças, novas ferramentas e reordenação de prioridades orçamentárias. Causa espécie que na agenda de negociações entre o governo e o funcionalismo público em greve, nenhuma palavra nesse sentido tenha sido pronunciada dos dois lados.
Sobretudo, porém, é inútil desperdiçar energia política com medidas protelatórias, aguardando o retono a uma ‘normalidade’ que não existe mais.
Os livres mercados levaram o mundo ao desastre atual. Não porque os banqueiros sejam demônios adornados de gravatas italianas. Mas porque a lógica segundo a qual a exacerbação dos interesses unilaterais leva à ‘ harmonia eficiente’ é esfericamente falsa. As perdas e danos da crise não nos deixam mentir.
‘Vamos reforçar a capacidade do Estado de planejar, organizar a logística, e compartilharemos com o setor privado a execução dos investimentos e a prestação dos serviços”, disse a presidente, após o anúncio desta quarta-feira. Oxalá isso não signifique apenas a criação simbólica de uma bem-vinda empresa estatal de planejamento.
Um bom dissipador de dúvidas seria divulgar um orçamento à altura do desafio histórico e nomear um grupo de intelectuais e lideranças sociais de peso para formar o conselho dessa usina de desenvolvimento. A ver.
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