José Carlos Fernandes
Felipe Lima
Sobre o Wando, cartas e caixas de sapato
Todo mundo conhece uma música cafona para chamar de sua. Elas têm o poder de uma terapia de efeito instantâneo. E por mais primárias que sejam, dizem algo sobre nós, sejamos iaiás ou ioiôs
Se o leitor não curtia Wando e está com dificuldade de sair do armário laqueado da cafonice, não se desespere. Vasculhe a memória em busca da música mais açucarada que ouviu desde o dia em que deixou de acreditar na cegonha. Se for do Márcio Greyck, paciência. Depois de identificá-la, solte a voz, nem que seja na escuridão do banheiro. É de direito lavar a alma.
Se a terapia lhe causar descabelamento compulsivo, aprume-se e se pergunte por que essa composição que não é de nada mexe tanto com seus nervos. Mexe porque diz algo sobre você, que é coração mole como todo mundo e tem saudade do Paraíso desde que Adão e Eva fizeram aquilo. O assunto ocupou Tomás de Aquino e Freud, mas virou letra e música foi mesmo com Wando e cia., com a vantagem de poder ser refletido ao pé do rádio da cozinha, junto com o apito da panela de pressão. “Você é luz...”
De tudo o que ele deixou, gosto de Moça. Acho um barato a parte que diz “teu passado é tão forte, pode até machucar”. Só depois de ouvir isso, ainda piá, entendi a expressão “fulana tem passado”, honraria reservada a duas mulheres da vizinhança, uma delas, hoje saudosa defunta. E tinha o lado lúdico, né. A turma do colégio trocava a palavra “moça” por “mosca”. Experimente: “Mosca, me espere amanhã...”. Um barato.
Mas minha canção vira-lata predileta é Eu te amo..., de Roberto Carlos, desde que na versão cabaré de Roberta Miranda. Gosto particularmente da frase “cartas já não adiantam mais, quero ouvir a sua voz...” Com o coral ao fundo, é o que há. Diz algo sobre mim. Pronto, falei.
Eu adorava receber cartas. Guardo-as todas comigo em caixas de sapato que serão reabertas nos dias ruins. Meu avô José repetia três vezes numa única missiva vinda de Portugal: “Meu querido, adorado e sempre lembrado neto”. Talvez lhe faltasse o que dizer, mas me fazia esquecer da timidez e da cara varrida de espinhas. E as da mãe, então. Foram centenas nos 13 anos estudando longe de casa. São fragmentos de sua fala impressos com caneta Bic.
Ano passado, fiz com os alunos um exercício de escritura de cartas. Me achando o Salman Khan, botei a moçada para ouvir Mensagem, sucesso de Isaurinha Garcia, agora no gogó de Ná Ozzetti. A contar pelas reações da audiência, nenhuma mãe tinha cantado para suas crias “quando o carteiro chegou, e o meu nome gritou, com uma carta na mão...” Como de resto, poucos haviam escrito uma carta de próprio punho até então. Quase comprei passagem para o Jurassic Park.
Dá dó imaginar que ficou para trás o ritual de passar a limpo num papel bem fininho, caprichar na perninha do “a”, lamber a aba do envelope verde e amarelo e postar numa caixa do Correio, sabendo que alguém vai abri-la com cuidado e, quiçá, guardá-la na caixa de sapatos como uma das melhores lembranças de nossos dias tão banais.
Acho que o reinado das cartas começou a declinar nos anos 90, quando o Daniel Day Lewis deu o fora na Isabelle Adjani por fax. Papelão. Dali em diante, foi ficando cada vez mais legítimo ser impessoal, dispensando todos os expedientes emocionais que a escrita pede. Cartas, em especial, são verdadeiros testamentos amorosos. Exigem tempo e um bocadinho de fosfato, dois ingredientes de altíssima combustão.
Pois é. Envelope, hoje, só se for do banco. Se bem que ano passado recebi correspondência de uma leitora, selada e com caligrafia de normalista. O escrito raro descansa nos meus guardados. Um dia, torço, será relido e vou confidenciar aos botões do pijaminha de flanela que a vida até que me deu sopa. Foi bom ter um e-mail. Mas nada como ter um passado.
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