O Brasil dos brancos: a negação como formadora da identidade sócio-política
QUA, 18/03/2015 - 07:16
A negação e o ódio que a parcela mais branca e mais abastada de nossa sociedade nutre em relação ao PT deriva de um momento de crise desse nosso estrato social que, não se enxergando mais como negro, ainda não formatou uma identidade sócio-política que o permita se integrar ao Brasil.
O Brasil sempre foi o que a parcela branca do povo brasileiro imaginou ser. Não poderia ser de outra forma, já que a parcela branca da nossa sociedade, desde sempre, exerce o poder econômico e político.
Interessante que se querendo como brancos tenham construído identidades que nos apresentavam, enquanto brasileiros, como índios inicialmente e como negros posteriormente.
Jamais se permitiu, no entanto, que a superioridade branca subjacente a essas identidades, e suas prerrogativas de poder, fosse colocada em questão.
O Brasil é um país que tardiamente formou seu sentimento nacionalista. Isso ocorre somente após a abdicação do Imperador Pedro I em 1831. Essa abdicação, que tinha como pano de fundo a rejeição a sua origem portuguesa, e eventos como a Guerra do Paraguai – 1864, levaram nossos intelectuais de então a imaginar uma identidade nacional brasileira. Cito aqui de memória o professor Luís Cláudio Vellafañe G.Santos em seu livro “O dia que adiaram o carnaval”.
Mas a construção dessa identidade se deu pela negação do outro.
Nós somos os índios.
Independentes totalmente da Coroa Portuguesa, quem eram os brasileiros?
Os brasileiros, éramos os que não eram portugueses e que também não eram nossos vizinhos do Vice-Reino da Prata.
Quando ouvimos um Galvão Bueno bradar “ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é melhor”, ouvimos ecos dessa construção da identidade nacional pela negação do outro.
Mas que imagem nos representaria?
Os índios. Éramos os Peris apaixonados, os bravos I-Jucas Piramas e os Policarpos Quaresmas patéticos e idealistas no seu nacionalismo.
Icônico disso é o belíssimo monumento equestre da Praça Tiradentes na cidade do Rio de Janeiro, onde em cada lado de seu pedestal a imagem helênica de um índio guarda um dos grandes rios que delimitam nosso território.
Óbvio que o tomarmos para nós a identidade dos índios não nos levou a incluí-los em nossa sociedade formal. Continuaram a ser massacrados.
Essa identidade de índios nos trouxe até a primeira metade do século XX.
Nós somos os negros e os pobres.
Então, pelos ido dos anos 60, o samba e o futebol haviam se tornado característicos do que nos individualizava. E nossos intelectuais haviam descoberto a África e Che Guevara.
Todo o questionamento social surgido nessa época, mais a necessidade de resistência à ditadura recém implementada no país, leva a imagem do índio a não mais representar o que nos distinguia de outros povos. Descobrimo-nos um povo mestiço, mulato e subdesenvolvido.
A noção terceiro-mundista foi adotada por nossa intelectualidade para negar a ideia ufanista do “Brasil Grande” dos generais. Tornamo-nos negros e pobres.
Daí a construção teórica da casa grande e da senzala convivendo em uma democracia racial.
E nesse ponto, a população miscigenada, o fato de casais inter-raciais não representarem um tabu e a existência de espaços públicos de convivência – onde a praia é seu melhor símbolo, deram consistência a essa construção da identidade nacional.
“Porque o samba nasceu lá na Bahia e se hoje ele é branco na poesia, se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Versos de “Samba da Benção” de Vinícius de Moraes e Baden Powell.
Claro está que quem conhece um mínimo do “brasileiro cordial” sabe que fora dos espaços idealizados “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, como nos lembra o Rappa.
Ou seja, mesmo ora imaginando-se como índio, ora imaginando-se como negro, o brasileiro branco jamais questionou sua condição de comando e prevalência.
O Povo brasileiro.
Em aparente contradição, se como imagem de povo a nacionalidade se apoiou na imagem do índio e do negro, enquanto individualidade sempre a figura do branco foi buscada como ideal.
O professor Darcy Ribeiro tem como seu canto de cisne uma obra seminal, “O povo brasileiro”. Nela descreve a formação de 5 Brasis. Vou me ater ao que me é mais próximo, o “Brasil caipira”. E, a partir dele, tentar fazer alguma analogia com os outros Brasis.
Nessa categoria, Darcy Ribeiro teoriza a formação do paulista a partir do branco português e do índio, ou seja, o paulista é, na origem, um mameluco. A entrada da vertente negra na formação do povo paulista passa a ser significativa somente com a introdução do café, a partir do século XIX.
O paulista era um povo que necessitava se definir, queria ser branco português, mas não era aceito como tal. Ao mesmo tempo recusava-se a se identificar como índio.
Negava, portanto, o que era e era negado pelo que queria ser. Essa negação pelo modelo almejado não o revolta, se não, o torna subserviente a esse modelo. Busca sua aceitação.
O paulista mameluco quer se branco.
Outra vertente na formação do povo paulista, essa não tratada pelo professor Darcy, foi a contribuinte das migrações e das imigrações. O filho do estrangeiro e o filho do migrante viviam o mesmo dilema. Para o filho do estrangeiro, o ideal estava na origem dos seus pais, mas essa origem lhe era negada. São lembrados de que são brasileiros pelos serviços de imigração dos países de seus pais.
Com o filho do migrante ocorre o oposto, realmente é paulista, mas tem negada sua naturalidade – são nordestinos. O mesmo vale para o negro, esse só pode ser negro.
Assim, o branco paulista vive o dilema da sua formação. É negado pelo que quer ser, nega o que realmente é.
O Brasil dos brancos: a negação como formadora da identidade sócio-política.
A partir dos anos 90, mudam as condicionantes sociológicas que faziam o brasileiro branco imaginar-se como negro. A derrocada dos ideais socialistas implanta uma crise de valores na intelectualidade.
Interessante notar que ao mesmo tempo em que o branco brasileiro não tem mais as condicionantes que o faziam identificar e valorizar a sua pátria como índia e negra, os índios e negros começam a se identificar como o que realmente são.
Nos anos 90, no mundo como um todo, o sucesso é branco e não há mais o contraponto do idealismo social ou metafísico. Porém, o modelo branco fali no Brasil. Os governos Collor e FHC resultam em fracassos.
O branco brasileiro passa então a buscar outra vez no estrangeiro o seu ideal. E pela primeira vez o brasileiro emigra. Mas no país de seus pais ou no seu modelo de sucesso, os EEUU, esse brasileiro branco tem negada a sua identidade e é tratado como no Brasil ele trata os negros e os nordestinos.
O branco brasileiro está agora na condição do mameluco seiscentista, o que ele quer ser lhe nega reconhecimento e ele nega o que realmente é. E como o mameluco, a negação pelo modelo não o revolta, antes, o torna subserviente a esse modelo. Busca-lhe a aceitação.
Nessa busca, acaba por forjar uma identidade pela negação. No Brasil, ele passa a se enxergar como o “não negro e o não pobre”. Ou, em São Paulo, ele é o “não negro e o não nordestino”.
E, mais uma vez, a negação será a sua forma de se posicionar na sociedade. Isso porque a chegada de Lula ao poder passa a promover o progresso exatamente das camadas sociais que o branco brasileiro passou a negar – os negros, os pobres e os nordestinos. Assim, o branco brasileiro não pode se identificar com o sucesso desse momento, ainda que dele se beneficie.
Essa noção de não pertencimento ao grupo que está obtendo progresso leva-o, pela primeira vez, a sentir ameaçado o seu senso de superioridade. Essa pretensa superioridade era o fator que lhe dava a segurança para assumir a identidade de índio e negro.
É essa insegurança e a crise de identidade ou de identidade formada pela negação que explicam o ódio ao “inimigo petista”. Explica também porque mesmo os pequenos burgueses nutrem esse ódio. A rejeição não se dá por classe econômica e sim pelo sentimento de filiação à identidade de “não negro e não pobre”. Os pequenos burgueses no Brasil estão muito mais próximos dos pobres do que da classe média, mas, se não se identificam como negros, negam a proximidade social com os pobres.
Isso explica também o porquê da sensação de uma nação dividida ao meio. Como nos traz o professor Luís Cláudio Vellafañe G.Santos: uma nação é uma comunidade imaginada. Imaginada porque, sem considerar a desigualdade e exploração que nela possam existir, a nação é sempre concebida com um companheirismo profundo e horizontal – em última análise, uma fraternidade.
Os brancos brasileiros não tem, neste momento, como se identificarem fraternos a todos os outros brasileiros, pois sua identidade de “não negros e não pobres” é excludente. Assim, seu Brasil é excludente também.
O risco, neste instante, é a manipulação de tais sentimentos de exclusão e sua instrumentalização contra um “inimigo” também imaginado. Não foi isso que vimos impregnado nas manifestações de 15 de março de 2015 e que nos assustou tanto? Ou como nos ensinou o professor Darcy Ribeiro: “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”.
O Brasil se encontra diante de um desafio, quase um paradoxo grego. Precisa reconstruir uma identidade nacional que possa ser compartilhada por todos, inclusive pelos brasileiros brancos. Mas o Brasil sempre foi o que a parcela branca do povo brasileiro imaginou ser. E essa mesma parcela encontra se em crise, pois, não se enxergando mais como negra, busca na negação se encontrar com o que é – brasileiros. O que, em mais 500 anos, só conseguiu ser quando se quis como índios ou negros.
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