A entrevista que teria salvo a vida de Chico Mendes
Há 25 anos, Jornal do Brasil teve a chance de publicar a entrevista que
poderia ter salvado a vida de Chico Mendes; o "interesse" pela publicação
do material, porém, só aconteceu após o assassinato do ativista
Edilson Martins e Chico Mendes durante gravação de documentário na floresta de Xapuri (AC)
Edilson Martins*
A pouco mais de um mês de completar 25 anos do assassinato de Chico Mendes, ocorrido no
dia 22 de dezembro de 1988, em Xapuri (AC), recebo do jornalista Altino Machado, do Blog da
Amazônia, a mensagem a seguir, que contém relevante depoimento e indagação:
- No dia 18 de dezembro de 1988, numa banca de revistas, em Rio Branco (AC), encontrei o
líder sindical e ecologista Chico Mendes (1944-1988) pela última vez. Estava triste ao constatar
que o Jornal do Brasil não havia publicado naquele domingo uma entrevista dele. Quatro dias
depois, em Xapuri, Chico Mendes foi assassinado. Qual é a história daquela que ficou
conhecida como a última entrevista do seringueiro, concedida a você, Edilson Martins?
Vamos lá, aos idos de dezembro. Chico Mendes telefona dizendo encontrar-se em São Paulo,
e que agora as ameaças sinalizavam, de verdade, sua morte. Corriam os dias de dezembro
de 1988; se esse é o ano da Nova Constituição, da greve na CSN, no Rio, ainda temos que
suportar as sobras da ditadura militar, José Sarney, presidindo o país. Na lata, respondi:
“Dá um tempo, vou tentar um depoimento teu no Jornal do Brasil”. Naqueles anos, o JB era um
dos grandes jornais, ainda, do país, apesar da crise financeira comendo pelas bordas.
Vou até a Av. Brasil, procuro o jornalista Zuenir Ventura, que editava um Caderno Especial, e
falo da morte anunciada. Ele reage, dizendo não saber de quem se tratava – em verdade
ninguém sabia, e combinamos de eu fazer a entrevista. Ligo para Chico, peço que venha
correndo ao Rio, e até argumentei: “Mano velho, com esta entrevista eles vão ter que adiar,
pelo menos uns dois ou três meses, tua morte”.
Ao chegar ao Rio, começamos a gravar, e dois dias depois o texto estava concluído. Vou ao
JB, e entrego, em mãos, a entrevista ao Zuenir. À noite, corria talvez o dia 7, ou 8 de dezembro,
convido-o para comer no Lamas. Ele baixa a cabeça, como se estivesse emburrado; “Tô sem
grana, e você gastando dinheiro comigo.”
Fomos ao Lamas, bar boêmio do Rio, até hoje, mas àquela época reunia a nata dos profissio
nais que “fechavam” a primeira página dos grandes jornais. Adentramos, falei com muitos
“coleguinhas”, fui a algumas mesas com o Chico ao meu lado, e ninguém, sequer ninguém,
perguntou quem era aquele caipira, roupas fora do padrão, gordinho, quase um capiau. T
erminamos por dividir um PF (prato feito).
No sábado, corro às bancas em busca do Caderno Especial, e vejo que a entrevista não saíra.
Entro em pânico. Procuro o Zuenir e sou informado que se encontrava em Vitória, no Espírito
Santo, mas que segunda-feira retornaria ao jornal. Na segunda, na redação, ele me diz que a
matéria não saíra porque eu estava trazendo mais um cara que politizava demais a questão
ambiental. Essa era a opinião do jornal.
– Os dois diretores: o Marcos Sá Correa e o Roberto Pompeu. Não tem “gancho”. Ninguém
sabe quem é ele.– Quem?
– Bom, o jornal vai esperar o cara ser assassinado? A morte dele está anunciada.
No dia 22 de dezembro, à noite, o jornalista Elson Martins (não é meu parente) me telefona de
Rio Branco (AC), ligação péssima, e informa que o Chico havia sido “atocaiado” dentro de
casa, e certamente morrera. A atriz Cássia Kiss, que morava em minha casa, entra em pânico.
Ela o conhecera e, curiosamente, o que o país queria saber, naqueles dias, era quem matara
Odete Roitman, numa novela da Globo. Havia sido a própria Cássia.
Já pela manhã recebo os parabéns do JB, por ter dado, via minha entrevista, um “furo” com a
matéria, de lauda e meia, sobre a morte. Quase os mandei a puta que os pariu, e procurei o
jornalista Fernando Gabeira. Conto a história, e ele conhecia muito bem o Chico Mendes.
Gabeira diz que vai entrar em contato com a Folha de S. Paulo, e falar com Otávio Frias Filho. Podíamos, acreditava o Gabeira, publicar na íntegra o último depoimento do Chico.
Como tudo na vida, houve um senão. Datilografara a entrevista, nove laudas, na minha valente
Olivetti 22, sem carbono, portanto, sem cópias, já que os existentes não mais prestavam.
Deixo Santa Teresa, onde morava, e na redação do JB sou cumprimentado, recuso, lembrando
a não publicação da entrevista no Caderno Especial. O que queria eram as laudas, e então
comecei a “blefar”. Precisava “blefar”.
– Vim comunicar, embora tenha as cópias das laudas – não tinha –, que preciso dos originais,
já que vou publicá-la, na íntegra, na Folha de S. Paulo.
O clima não era nada sereno, e um deles replica:
– Nada disso, vamos dar uma página inteira aqui no JB, não mais no Caderno Especial, mas
no 1º Caderno, na íntegra.
Sugeri, lembro-me bem, uma página ímpar, o que foi feito, e o Roberto Pompeu foi mais longe:
- Vamos fazer um pequeno editorial, na primeira página. Preciso de um texto seu com subsídios
. Era a primeira vez que se fazia um editorial na primeira página.
Feito o acordo, o JB publica na íntegra o testamento, Chico Mendes passa a ser Chico Mendes,
o país fica perplexo, e neste último depoimento nomina os mandantes, assusta o mundo, dado
as razões de sua morte: defesa intransigente do meio ambiente – e o jornal ganha mais uns
12 anos de vida digna.
Que fique claro um detalhe: no lugar de Marcos Sá Correa e Roberto Pompeu, eu, se editor
fosse, não teria agido de forma diferente. Chico Mendes não tinha “gancho” para ganhar uma
página inteira politizando, como de fato estava fazendo, a questão ambiental.
O que surpreende, e aí já não é mais um detalhe, é a performance do Zuenir. Desloca-se para
o Acre, por convencimento meu, inclusive num voo comigo, onde lá nunca antes estivera, produz
uma série sobre a morte de Chico Mendes, por sinal, boa, posto que ajudado pelo jornalista
Elson Martins, que não tem nenhum parentesco comigo, repito, e a partir daí passa a ser o
Torquemada dos assassinos e mandantes.
Zuenir ganha um Prêmio Esso, certamente com muito lobby, escreve um livro, adota o garoto
Genésio, uma das testemunhas juradas de morte, que hoje ninguém sabe aonde se encontra,
e vira amigo de infância, tendo jogado peteca, com certeza, nas barrancas do rio Acre, com
Chico Mendes. Certamente, toda essa proeza, foi o seu maior feito jornalístico, mestre Zuza.
*Edilson Martins é jornalista e escritor acreano radicado no Rio, trabalhou e ainda colabora
na grande imprensa brasileira. É autor de oito livros: “Nossos Índios, Nossos Mortos”;
“Amazônia, a Última Fronteira”; “Nós, do Araguaia”; “Makaloba” e “Chico Mendes”, entre
outros.
Dirigiu o documentário “Chico Mendes”, entre outros, onde é feita a narrativa de sua morte,
tendo sido, na primeira década dos anos 1990, um dos mais exibidos no mundo. Já ganhou
o maior prêmio televisivo do país, o “Wladimir Herzog”.
No ano passado, lançou a série televisiva “AmazôniAdentro”, uma revisitação à região nos
últimos 120 anos. Tem novo livro pronto, “A Viagem de Bediai”, e trabalha na produção de
uma grande série para a TV sobre a região amazônica.
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