Miguel do Rosário
A luta pelo poder
Voltemos ao núcleo incandescente da história. O STF enveredou por uma farsa patética, mas suponho que as pessoas ainda acreditem na velha máxima: onde há fumaça, há fogo. O que os petistas fizeram de errado? O que houve, em suma?
Esta é minha versão da história, sem pretensão de pôr um ponto final. Com base na enorme quantidade de documentos, entrevistas, depoimentos, relatos que temos hoje à nossa disposição, o mais difícil é justamente separar o joio do trigo e oferecer uma interpretação objetiva e ordenada dos acontecimentos. Mas dados e fatos não faltam.
A campanha de Lula em 2002 havia sido bem abastecida de recursos contabilizados, e a prestação de contas fora aprovada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Lula diplomava-se presidente da República. Delúbio Soares fizera um excelente trabalho como tesoureiro. Era um herói do PT.
Não fora uma vitória fácil. Lula e o PT lutavam contra um poderio arraigado há séculos. As campanhas da direita vinham se tornando cada vez mais eletrônicas, baseadas na televisão e nos meios de comunicação em geral. Desde meados da década de 80, a classe política tradicional havia avançado sobre canais de tv, estações de rádio e jornais impressos. Com eles, destruíam reputações, enalteciam personalidades, chantageavam empresários e, por fim, ganhavam eleições.
Para vencer este império difuso, relativamente organizado em torno de um grande eixo central, as Organizações Globo, o Partido dos Trabalhadores usou duas estratégias: de um lado, fez uma campanha nacional altamente profissional, contratando os melhores marketeiros do mercado e usando material gráfico de primeira; de outro, a militância em todo o país botou os pés na lama e correu o Brasil pedindo voto de porta em porta.
Quem poderá medir o esforço necessário para vencer um conservadorismo que detinha a máquina federal, a maioria dos governos nos estados e todos os meios de comunicação no país? Qual o valor real dessa campanha? Digo, não o valor em termos pecuniários, mas o valor humano?
Entretanto, por mais que enormes contigentes humanos trabalhassem espontanea e voluntariamente, por convicção política, por espírito de cidadania, ainda assim havia necessidade de muito mais. Um pacato cidadão de classe média, assistindo tranquilamente ao Jornal Nacional no sofá da sala, talvez encontre alguma dificuldade em conduzir sua imaginação até um comitê de campanha eleitoral. É ali onde tudo começa: a vitória, a derrota, as dívidas. É um frenesi constante. A militância partidária de base, seja de que partido for, de esquerda ou direita fisiológica, é pobre. O primeiro gasto de um comitê de campanha é alimentar a mão-de-obra. Se não há dinheiro, faz-se um acordo com restaurantes locais para se pagar posteriormente. É preciso pagar o transporte, impressão de santinhos, confecção de bandeira. As lideranças comunitárias, por sua vez, pedem reuniões com os chefes de campanha para negociar a contratação de seus exércitos. Não é uma operação de compra e venda. É política. A liderança comunitária não vende seu apoio a quem paga mais. Não necessariamente. Ela tem de pensar, sim, na eleição enquanto uma oportunidade para o povo ganhar uns trocados e sobreviver mais alguns meses. Mas há política envolvida. O candidato tem de ganhar sua confiança, e fechar compromissos políticos. Vai fazer uma obra de saneamento aqui? Vai construir uma escola e um posto de saúde acolá? E a liderança não pode ficar, de qualquer forma, na contramão do desejo de sua comunidade. Se ela quer votar em Lula, então a tendência é fechar uma parceria com um candidato que também o apoia.
Não podemos esquecer que grande parte dos recursos movimentados nas eleições voltam para o bolso do povo, na forma dos trabalhos que realizam nas infinitas atividades de campanha. Essa é uma realidade para legendas de todos os espectros ideológicos. A classe média cantarola um lulalá aqui, tenta convencer um amigo ali, cola um brochinho no peito, manda uns emails, e sai dizendo ao mundo que “trabalhou duro na campanha”. Mas não tem noção do que é, de fato, uma campanha eleitoral nas periferias das grandes cidades e no interior, onde se concentra o grosso do eleitorado.
Nas regiões pobres e populosas, as engrenagens da democracia ficam expostas ao ar livre. Ali se dá o processo originário de “compra de apoio político”. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos escreveu um ensaio, ainda antes do governo Lula, falando sobre “a corrupção democrática”. Numa democracia, a alta rotatividade dos cargos públicos oferece, periodicamente, uma nova leva de tentações humanas. Mas ele poderia ter mencionado uma outra característica ainda mais perturbadora da democracia: as campanhas.
A democracia apenas regulamenta, ordena e civiliza a luta pelo poder. Mas a luta em si, mesmo num processo democrático, permanece implacável. A democracia não anula a lei do mais forte. Se num debate, um candidato gagueja e demonstra medo ou fraqueza, perde pontos. O eleitor vota naquele que considera melhor e mais forte.
Em 2002, logo após a vitória de Lula, os comitês regionais do Partido dos Trabalhadores informaram que possuíam enormes passivos a serem resolvidos. Quando falamos em dívidas de campanha, também precisamos exercitar a imaginação. O político tradicional, dono de terras, lida com certa facilidade com esse tipo de problema. Com crédito farto nas instituições bancárias, ele pode “financiar” suas dívidas. Um partido de esquerda, cujas lideranças pertencem, em sua grande maioria, a estratos medianos ou baixos da sociedade, não tem crédito. Dívida de campanha, numa periferia pobre, pode se tornar um problema trágico.
O mensalão começa aí, portanto. No pagamento das dívidas de campanha de 2002, para os diretórios regionais. O PT não tinha dinheiro, nem crédito bancário. Aparece Marcos Valério, um sujeito que construíra, ao longo da era FHC, uma rede de contatos nas altas rodas do mercado financeiro, e se oferece como avalista de empréstimos. Depois pega empréstimos em seu nome para repassar ao PT. Tudo isso está nos autos e depoimentos.
As eleições de 2004 se aproximavam. O próprio Roberto Jefferson, conforme descreve Paulo Moreira Leite em seu livro “A outra história do mensalão”, diz que “o mensalão não era federal. Era municipal, porque as eleições de 2004 eram municipais e o dinheiro de Delúbio e Marcos Valério destinavam-se a essa campanha”.
Faz sentido que as eleições municipais sejam ainda mais problemáticas em termos de financiamento que a nacional. Tudo é mais obscuro e mais sujo numa eleição municipal. Com exceção de uma ou outra capital mais importante, não há dinheiro das grandes instituições financeiras, e os pequenos potentados locais preferem doar por baixo dos panos com receio de que, não ganhando seu aliado, enfrente represálias.
No julgamento da Ação Penal 470, os ministros do STF pontificarem sobre o que se deve ou não fazer numa eleição, como se eles tivessem alguma vaga ideia de como as coisas funcionam. Ayres Britto se recusou acreditar na versão de João Paulo Cunha de que o dinheiro que recebera seria para pagamento de uma pesquisa eleitoral, mesmo com esse apresentando notas fiscais. Britto não acreditou porque, segundo ele, 2003 não era um “ano eleitoral”.
Mais uma vez, o Brasil é vítima da desinformação. Tivemos duas décadas de ditadura militar, sem campanhas, sem eleições, sem informação. Não fizemos livros, filmes, não publicamos reportagens sobre o processo eleitoral na democracia moderna. Até hoje, os estudantes de ciência política estudam mais o processo eleitoral do Império e da Velha República, através dos livros de Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto) e Raymondo Faoro (Os donos do poder) do que a realidade eleitoral contemporânea.
Os partidos políticos tem dinâmica interna. Antes do lançamento de uma candidatura, as legendas travam duras guerras domésticas, às vezes tão duras e sujas quanto o processo eleitoral em si. Quem será o candidato a deputado, a prefeito, a governador, por um determinado partido? É nessa hora que uma pesquisa faz diferença. E pesquisas confiáveis custam caro.
Não sou advogado de Cunha. Por mim, ele pode ter feito qualquer coisa com aquele dinheiro. Mas se ele apresenta notas ficais, uma versão consistente, e afirma que o recurso tinha fins eleitorais, o mínimo que se espera de um juiz é que respeite a sua história. Não estamos falando de um ladrão de galinhas, mas de um deputado federal eleito com uma quantidade colossal de votos. E para ser eleito, ele precisou, necessariamente, trabalhar duramente em sua própria campanha eleitoral.
Entramos em 2004, e Delúbio Soares começa a distribuir dinheiro para os quadros que integravam a sua corrente dentro do partido, com vistas a iniciar os trabalhos eleitorais. Em seguida, terão início as negociações entre os partidos que integrarão a base aliada. As lideranças se encontrarão e combinarão estratégias únicas de comunicação, e negociarão ajudas financeiras mútuas. Enquanto isso, o Congresso trabalha, com os mesmos partidos.
No dia 26 de maio de 2013 (ontem, domingo), o colunista Ilimar Franco, do Globo, publicou a seguinte notinha:
Usos e costumes - Entra e sai governo e a história se repete. O PMDB é tratado como parceiro de segunda categoria. Todos os dias porta-vozes do Planalto praticam a desqualificação de seu principal aliado. Foi assim também no governo Lula, que esnobou o partido até estourar o mensalão. Assim como o PT agora, o PSDB também menosprezava seus aliados no governo FH. Os tucanos, como os petistas, também queriam desbancar os aliados nos Estados. O ex-líder do governo FH Benito Gama, atual presidente do PTB, então no PFL, na época arrematou: “O PSDB tem que escolher. Dar um cargo para o B. Sá (deputado tucano) no Piauí ou aprovar a emenda da reeleição. Os dois não dá”.
Deixando de lado qualquer análise sobre o objetivo da nota, que é produzir cizânia entre PT e PMDB, enfraquecer a base aliada e abrir mais espaço para Aécio Neves crescer, vamos direto ao final. Observe como pensava o líder do governo FHC, Benito Gama: para aprovar a emenda da reeleição, o governo tinha que comprar apoio político dos outros partidos através da distribuição de cargos. A questão proposta por Gama foi respondida na prática: FHC conseguiu aprovar a reeleição para si mesmo.
No auge do escândalo, esse tipo de explicação começa a vir a tôna. O próprio Lula vai a televisão pedir desculpas ao país e dizer que o seu partido fez aquilo que todos os outros faziam. Lula foi sincero, mas seu depoimento não repercutiu bem. Seus adversários reagiram com ferocidade redobrada diante da franqueza lulista. A direita, com hipocrisia; a esquerda, com incompreensão.
Ué, mas o povo brasileiro não elegeu o PT justamente para mudar “tudo que está aí”? Não. A utopia de que a democracia brasileira poderia ser “higienizada” completamente é ridícula e irreal. Mesmo que todos os políticos se tornassem anjos exclusivamente interessados em fazer o bem à população, ainda assim teríamos o conflito de interesses. Operários, donas de casa, empresários, banqueiros, servidores, artistas, índios, sem-teto, cada um puxa para um lado e aplaudirá os esforços que seu representante fizer para ajudar sua classe.
O PT fez caixa 2 porque usou os empréstimos de Marcos Valério para pagar despesas de campanha, tanto as dívidas de 2002 quanto as de 2004, mas a tese de “compra de apoio político” tem um vício de origem: ignorância em relação ao processo democrático. A tese de compra de apoio político só pode ser levada minimamente à sério quando está em jogo um projeto para mudar a constituição e ampliar o poder do grupo hegemônico, como foi o caso da emenda da reeleição. E mesmo assim, deve-se tomar muito cuidado. Em toda a América Latina (inclusive no Brasil, com FHC), os presidentes mudaram suas leis para ampliarem seu próprio poder e, pese os protestos das respectivas oposições e os debates acalorados, prevaleceu a ideia de que foram processos democrativamente válidos. Entretanto, falar em compra de apoio político para se entender a reforma de previdência, que envolveu o país inteiro num debate extremamente duro e complexo, não faz nenhum sentido. O PT queria “dar um golpe” aprovando a reforma da Previdência? E para isso deu 15 mil reais ao professor Luizinho?
José Dirceu, por exemplo, está sendo condenado por fazer a coisa mais importante numa democracia: articulação política, construção de maioria parlamentar e busca da governabilidade. O sistema democrático tem seus freios e contrapesos, mas sem um grande concerto entre os diversos interesses políticos e econômicos conflitantes jamais haverá estabilidade e desenvolvimento. O Supremo Tribunal Federal comete uma infâmia ao criminalizar a política, porque é a política o único instrumento que nos salva do completo caos. E temos que considerar a política em sua acepção plena, objetiva, concreta, que inclui duras e complexas negociações partidárias, além de acordos eleitorais, envolvendo recursos de campanha. A nossa lei eleitoral, inclusive, deveria ser modernizada para dar mais liberdade aos partidos para se aliarem e integrarem campanhas. Algumas coisas que hoje são irregulares, poderiam ser legalizadas.
Uma das consequências mais negativas do processo do mensalão foi a desqualificação do próprio conceito de ética. De repente, conseguiu-se transmitir à sociedade que tudo relacionado à política (luta pelo poder, pagamento de dívidas de campanha, estabelecimento de acordos eleitorais e partidários, construção da governabilidade) era sujo; e do outro lado, nas limpas e ordenadas redações de jornal, reinava a ética. Depois se mostraram juízes de capa preta, rosto asséptico e severo, transitando por salões brilhantes e luzidios, como os úlitmos éticos de uma nação decadente. De fato, que diferença entre o ambiente esterilizado do STF e um comitê de campanha em Belém do Pará, todo sujo de papéis, infestado de militantes de olhos famintos! Ou ainda de uma reunião num apartamento de luxo em Brasília, com políticos bebendo uísque, falando palavrões, insinuando negociatas e partilhando estratégias de campanha! No entanto, a mocinha democrática sente-se muito melhor nesses dois últimos ambientes, o comitê bagunçado e o apartamento cheirando a uísque, do que num tribunal. Ela sabe que estará mais protegida na companhia de militantes pinguços e políticos de olhos lúbricos, que a conhecem há muitos anos, do que ao lado de juízes intimidados por barões da mídia. Entre a donzela democrática e os políticos, existe o julgamento de 100 milhões de eleitores, que decidirão com quem ela deverá se deitar. Entre ela e os ministros do STF, temos a opinião de tão somente 11 cidadãos fortemente influenciados pelo ambiente de classe em que circulam, vulneráveis à chantagem, à vaidade e à corrupção