Da Istoé
Dono da Panair, da TV Excelsior e da Comal, a maior exportadora de café do Brasil, Mario Wallace Simonsen foi expurgado da história empresarial do País. Por quê?
Por Ivan Martins
Está enterrado no cemitério de La Batignolle, em Paris, um ilustre empresário brasileiro de quem ninguém gosta de lembrar: Mario Wallace Simonsen. Ele morreu em fevereiro de 1965, aos 56 anos, depois de ter sido, até pouco antes, o homem mais rico e um dos mais influentes do Brasil. Sobrinho do fundador da Fiesp, este Simonsen era dono, simultaneamente, da mais famosa companhia de aviação do País, a Panair, da emissora de televisão de maior sucesso, a Excelsior, e da Comal, a maior empresa de exportação de café do Brasil, num período em que o café respondia por dois terços das exportações nacionais. Naquele Brasil acanhado do início dos anos 60, isso bastaria para credenciá-lo como príncipe, mas havia mais. O elegante e discreto neto de ingleses, cujos olhos azuis viviam escondidos atrás de lentes fotocromáticas, tinha também duas dezenas de outras empresas, entre as quais a Companhia Melhoramentos e o Banco Noroeste, para citar apenas duas. Ele, sua esposa Baby e seus três filhos – Wallace, John e Mary Lou – viviam envoltos numa aura de realeza que não tem equivalente no Brasil moderno. Apesar disso, Simonsen morreu em Orgevall, um vilarejo próximo a Paris, destituído de quase tudo, inclusive da vontade de viver.
Entre uma situação e outra ocorreu uma avalanche. Simonsen perdeu sua esposa para a depressão, foi vítima de uma campanha de difamação como poucas vezes se viu no Brasil e seus negócios foram arruinados por oito meses de investigação escandalosa no Congresso. Acima de tudo, porém, ele foi atingido pelo golpe de Estado de 1964, que instalou no poder pessoas que o tinham na conta de inimigo. O regime foi implacável com ele. “A ditadura militar realmente acabou com o Mario”, avalia, 40 anos depois, seu advogado e amigo Saulo Ramos, ex-ministro da Justiça no governo José Sarney. “Havia a pressão das empresas americanas de café orquestrada por Herbert Levy; havia a Varig que queria abocanhar a Panair e havia os Diários Associados, que tinham ódio da Excelsior. Milico algum agüentaria tanta pressão.”
Destruído, arruinado, morto e enterrado, Simonsen foi rápida e estranhamente esquecido – embora fosse, por várias medidas, um empreendedor notável, movido por convicções à frente do seu tempo. Criou o primeiro supermercado brasileiro, o Sirva-se, e fundou no início dos anos 60 uma empresa chamada Rebratel, que interligou Rio e São Paulo através de um link de microondas inédito na época. Com ele, se transmitiu pela primeira vez ao vivo, do Maracanã, uma partida de futebol entre as seleções paulista e carioca. “A TV Excelsior foi a primeira emissora a ser administrada com visão empresarial”, acrescenta Álvaro Moya, um dos primeiros diretores do conhecido Canal 9 de São Paulo. “Criamos uma grade de programação moderna e em seis meses despontamos em primeiro lugar na audiência. A Globo copiou tudo.”
No mercado de café, onde se concentrava o grosso da sua fortuna, Simonsen arriscou-se a disputar com as grandes companhias americanas o espaço da distribuição internacional. Não se conformava que o Brasil fosse apenas exportador passivo de grãos e montou uma empresa, a Wasin, para atuar agressivamente nos mercados da Europa e dos EUA. A Wasin tinha escritórios nas principais praças comerciais do planeta e representantes em 53 países, da Colômbia ao Burundi. Café era o seu forte, mas também vendia cachaça, feijão, guaraná, frutas e carne seca. No apogeu, diz seu genro, o conde italiano Carlo de Villarosa, a exportadora de Simonsen chegou a movimentar US$ 200 milhões por ano, uma fortuna imensurável para a época. Não obstante, esse empresário pioneiro foi exumado da memória empresarial brasileira. Talvez porque tenha ficado na contramão do regime militar, talvez porque aos beneficiários da sua ruína interessasse enterrar sua memória, o fato é que Simonsen foi expurgado do passado. Ao contrário de outros empresários nacionalistas destruídos pelo Estado, como Delmiro Gouveia e Ireneu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, Simonsen ainda não recebeu o seu quinhão de reconhecimento. Em conversa com DINHEIRO, Mario Amato, o ex-presidente da Fiesp, custou a se lembrar de Simonsen, embora o empresário e sua família fossem uma lenda glamourosa na São Paulo dos anos 60.
Os poucos que se lembram dele associam o nome ao mar de lama represado por Levy durante a CPI da Comal, convocada para investigar supostas irregularidades na comercialização internacional de café. As acusações do deputado, quando transformadas em denúncia do Ministério Público, foram rechaçadas pelo Supremo Tribunal Federal como totalmente fantasiosas em pleno regime militar. Mas as empresas de Simonsen, àquela altura, já tinham sido fechadas, fracionadas ou vendidas. “A Justiça que tarda mas não falha é coisa que não funciona no mercado de crédito e no mundo dos negócios”, diz Saulo Ramos. “Nesse mundo, depois de um tempo o estrago está feito.”
A derrocada do império foi rápida e inesperada. Apanhou a filha mais nova da família em meio a um conto de fadas. Loira e linda, Mary Lou era a musa das colunas sociais nos dois lados do Atlântico. Sua festa de debutante foi realizada em Londres, na presença da rainha da Inglaterra. Seu noivado com o conde Villarosa, aos 17 anos, também foi celebrado em Londres, na embaixada do Brasil. Com seu irmão mais velho, Wallinho, dava-se o mesmo. Alto e tímido, dirigia um espetacular Mercedes esportivo pelas ruas de São Paulo, tinha casa com mordomo em Paris e demonstrava pouco apreço por dinheiro. Um amigo lembra que Wallinho era capaz de riscar uma ordem de pagamento com valor em branco, assiná-la e mandar o beneficiário sacar no banco da família – que pagava. O próprio Wallinho contava, anos depois, que nos tempos de fausto mandava tirar os bancos de aviões da Panair para levar ao exterior os cavalos do seu time de pólo. A morte do pai o encontrou despreparado para o duro mundo dos negócios que o cercava. Sua única experiência vinha da TV Excelsior, onde o experimentalismo artístico predominava sobre as técnicas de gestão. “Éramos muito jovens, muito ingênuos e fomos muito enganados”, diz Mary Lou, que tinha 21 anos na manhã em que encontrou o corpo morto do pai, vítima de um enfarte noturno. A mãe havia morrido seis meses antes. “Com a morte do meu pai e todos os problemas que se seguiram, cada um de nós surtou de um jeito”, diz ela.
Um dos mistérios que cerca esta história é o motivo da feroz perseguição que a ditadura moveu contra Simonsen. No encerramento da CPI da Comal, 25 dias depois do golpe, Levy conseguiu que o novo regime cancelasse a licença da empresa para comercialização de café, sem que ela tivesse um único título protestado. Isso arruinou a companhia. Aconteceu o mesmo com a Panair, que teve sua concessão de vôo cassada pelo brigadeiro Eduardo Gomes. Suas rotas e propriedades foram imediatamente apropriadas pela Varig, num açodamento que até hoje espanta quem se debruça sobre o episódio. Depois do golpe, como insistisse em cobrir a repressão do novo regime, a TV Excelsior foi tomada pelos militares e, no Rio de Janeiro, sofreu intervenção do governador Carlos Lacerda, golpista de primeira hora e inimigo declarado de Simonsen. Quando o novo governo, ignorando acordos assinados pela Comal com as autoridades monetárias, concluiu que o Grupo tinha para com o Estado uma dívida de café no valor de US$ 23 milhões, Simonsen ofereceu seu vasto patrimônio como garantia para continuar operando no mercado de grãos. O Banco do Brasil fez as contas e concordou com a proposta, mas, logo em seguida, voltou atrás, sob pressão política. Simonsen ficou com a dívida, sem direito a comercializar café para pagá-la e impedido de afiançar a dívida com seus próprios bens. Desse desencontro numérico, lembra Saulo Ramos, surgiu a execução do BB contra o Grupo. Em 13 de março de 1965 os jornais noticiaram o seqüestro de 30 empresas de Simonsen. Nos 10 anos seguintes, em custosas batalhas legais, os filhos do empresário perderam todas a empresas e propriedades do pai, inclusive um castelo em Alton, na Inglaterra. Do rosário de empresas ficou apenas o banco Noroeste, que Simonsen tivera o cuidado de passar ao irmão Jorge e ao primo Leo Cochrane quando a perseguição política começou. Seus próprios filhos ficaram sem nada.
Se o esforço da ditadura em destruí-lo é evidente, os motivos para isso são menos óbvios. Simonsen não era um homem de esquerda e nem gozava de especial intimidade com Jango Goulart. Como tantos empresários, era governista por necessidade. Em agosto de 1961, quando Jânio renunciou e a direita tentou impedir a posse de seu vice, Simonsen engajou-se ao lado da legalidade, arranjando inimigos entre militares e conspiradores civis. Jango se encontrava na Ásia e disseminou-se a lenda de que ele voltara ao Brasil em um avião da Panair. Não foi assim. DINHEIRO apurou que o dono da Panair estava em Londres quando soube que se tramava contra a posse de Jango. Imediatamente mandou Max Rechulsky, seu mais importante executivo na Europa, interceptar o vice-presidente em sua viagem de retorno da China, para pô-lo a par dos fatos. O encontro deu-se em Zurique. Dali, em vez de seguir para Londres, como era seu plano, Jango voou para Paris com Rechulsky. Hospedou-se no Príncipe de Gales, ao lado do escritório da Wasin. “No nosso escritório ele fez dois telefonemas, um para Santiago Dantas e outro para Juscelino”, contou Rechulsky à DINHEIRO. “A conta de Jango em Paris foi paga pelo nosso escritório. Não me recordo do montante exato, mas foi bastante.”
Anos mais tarde, Wallinho se queixaria de que Jango não soube honrar o favor. Seu pai estava sendo perseguido na CPI da Comal e Wallinho procurou o presidente. “Ele não fez nada. Só me disse que iria falar com o pessoal do PTB”, lamentaria em conversa com o professor Carlos Henrique Novis, da Universidade de Brasília. Novis fez sua tese de mestrado sobre a derrocada do império Simonsen e conversou longamente com Wallinho. O homem que já fora o playboy mais rico e invejado do Brasil, casado com a mulher mais bonita da época – a socialite carioca Regina Rosemburgo, musa do Cinema Novo – morava no final dos anos 80 em um modesto apartamento da rua da Consolação, em São Paulo, no qual tinha vergonha de receber os amigos. Morreu em 2001. Trinta e seis anos antes, no dia da morte de seu pai, os jornais de São Paulo publicaram um anúncio fúnebre, assinado pelos funcionários da TV Excelsior. Ali se desejava paz, depois de meses de desassossego. “Agora os ódios e as perseguições não o podem mais atingir.”
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