“Estou cego”, afirma desesperadamente o motorista paralisado em frente ao semáforo (p. 12).* Mas o que ele “vê”, se assim se pode afirmar, não é a treva, mas uma brancura infinita. “Sim, entrou-me um mar de leite”, diz o cego (p. 14). É uma cegueira incompreensível, repentina e sem explicações. Os que vêem não podem acreditar que o cego assim se encontra. Mesmo o médico, especialista nas coisas da visão humana, não descobre a causa da doença. “Os olhos do homem parece sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana” (p. 12).
A cegueira branca é uma alegoria sobre a falta de visão social e política diante da realidade que nos circunda. Os indivíduos, alienados, encontram-se apartados do mundo, imersos na ideologia individualista e consumista. Eles vivem fora da realidade, ainda que tenham olhos não a reparam. Tudo lhes parece natural. Se a satisfação hedonista alimenta a “cegueira”, é o medo da perda e da impossibilidade de saciar-se e manter-se em “segurança” que os tornam cegos. Diante da insegurança e das incertezas, cegam-se. Talvez nos encontremos no estado de cegueira, ainda que nossos olhos vejam. “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos” (p. 131).
Se o medo caminha de par com a insegurança, ele também é irmão da necessidade. Os homens e mulheres estão dispostos a ceder devido ao medo, mas também porque precisam de segurança. O domínio não se explica apenas pela capacidade de coerção, mas também pela inculcação do medo. E é sob o medo e a necessidade que os cegos internados se submetem ao grupo que passa a controlar a comida. Este funciona como o governo que impõe a ordem. Os homens e mulheres parecem incapazes, por seu egoísmo e instinto de sobrevivência, de governarem-se. Eles precisam passar pelo aprendizado da solidariedade e autonomia. Mas a situação miserável em que se encontram, sob todos os aspectos, dificulta o autogoverno e parece mais fácil, e mais prudente, submeter-se. Isto ocorre devido ao estado deplorável dos cegos. Na vida real, mesmo em situações de normalidade democrática o medo é utilizado como instrumento de persuasão.
Os que conseguem manter uma certa civilidade também se mostram apegados ao governo hierárquico, buscam a autoridade que possa ordenar o caótico em que vivem. E esta se vincula ao prestígio alcançado na sociedade. É irônico que os cegos tenham no médico de olhos a possível autoridade. “O melhor seria que o senhor doutor ficasse de responsável, sempre é médico, Um médico para que serve, sem olhos nem remédio. A mulher do médico sorriu, Acho que deves aceitar, se os mais estiverem de acordo, claro está” (p. 53).
Esta mulher é a única que vê, e isto a fará sofrer com ainda maior intensidade. Só ela verá a que ponto chegamos quando nos faltam as condições para a segurança. É como se, diante dela, estivessem nus, em todos os sentidos, e a ela fosse possível ver a essência, o que realmente somos. A mulher é a que sofre porque tem a sabedoria. O conhecimento, a consciência do real, gera sofrimento. Os que sabem estão condenados a sofrer.
Será possível a autoridade numa situação de desespero, quando a existência humana está sob xeque e a espécie é reduzida à luta pela sobrevivência? Não seria o reino da necessidade o salve-se quem puder, a guerra de todos contra todos, o homem lobo do homem?
No início são apenas seis cegos internados; serão dezenas em alguns dias e não se entendem. Os homens submetem as mulheres à violência animalesca dos que controlam a comida e aceitam tudo para se manterem vivos. Elas se dispõem a se sacrificar e enfrentam o moralismo inútil dos homens. No entanto, é possível vislumbrar a esperança de que os homens e mulheres cooperem, se solidarizem e, inclusive, sejam capazes de combater o medo e resistir à opressão.
Mesmo quando são isolados, os cegos parecem preferir a prisão à liberdade – desde que tenham a “segurança” de que continuarão a viver. “Bem vistas as coisas, nem se está mal de todo. Desde que a comida não venha a faltar, sem ela é que não se pode viver, é como estar num hotel. Ao contrário, que calvário seria o de um cego lá fora, na cidade, sim, que calvário” (p. 109). Nesta altura ainda há a perspectiva de que a cegueira não se generalizará, ou seja, há a ilusão de que o governo cuida deles. E se os governantes e todos os que sustentam o aparato administrativo burocrático cegarem? Metaforicamente temos aqui a expressão da dependência dos governados, sem que lhes passe pela cabeça de que eles podem governar-se. E terão que o fazer quando a situação exigir.
Mas primeiro terão que enfrentar o medo. E não é mero acaso que a única que vê, a mulher do médico, será a primeira a mostrar o caminho. A força se enfrenta com a força, só esta é capaz de derrubar o despotismo. Os que dominam pelo medo precisam experimentar do próprio veneno. É preciso que não se sintam tão seguros de que seus meios permanecem eficazes para manter o domínio. É necessário que tenham dúvidas, insegurança e medo. A violência não se aplaca com belas palavras e com a moral da paz dos cemitérios e dos conformistas. A mulher do médico mata o cego ditador com a sua tesoura. Ela sabe que era necessário e que alguém precisava fazê-lo. Eis o preço da liberdade!
É interessante o discurso governamental para justificar o enclausuramento:
“O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio, supondo que de contágio se trata, supondo que não estamos perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis. A decisão de reunir num mesmo local as pessoas afetadas, e, em local próximo, mas separado, as que com ela tiveram algum tipo de contacto, não foi tomada sem séria ponderação. O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam, como cumpridores cidadãos que devem de ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando também que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações, um ato de solidariedade para com o resto da comunidade nacional” (p. 194).
A mensagem do governo é repetida cotidianamente pelo alto-falante. Os cegos logo perceberão que foram abandonados à própria sorte. As promessas se revelam falsas. A comida se torna escassa e, por fim, não será mais entregue. Há mesmo, entre as autoridades, quem considere a perspectiva de que os cegos matem uns aos outros. Não seria esta uma cura eficaz?! Suposições e pedidos de obediência em nome da segurança geral e da nação! E os governados consentem. Eles precisam crer que há alguém que cuida deles, que existe uma “autoridade” capaz de impor a ordem ao caos.
Em meio ao desespero a mulher do médico representa a esperança. Ela conclui “que não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega, está visto que aqui já ninguém se pode salvar, a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (p. 204). Ela reconhece que é preciso resistir. A visão também tem o sentido de acreditar que a realidade pode ser transformada. Os que vêem têm a responsabilidade de contribuir para, no mínimo, acalentar os que não vêem e tentar mostrar o caminho e lhes abrir os olhos. “A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” (p. 241) pode ser motivo de maior sofrimento, mas também expressa a possibilidade de que este cesse.
O fato de ver o grau de miserabilidade humana também nos torna capazes de reconhecer as fraquezas humanas e a sermos modestos. Os próprios cegos, ao vivenciarem as agruras decorrentes da cegueira, de terem que se virar, até do ponto de vista da higiene pessoal, passam a se conceber e aos demais de maneira mais humana, pois “quando a aflição aperta, quando o corpo se nos demanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos” (p. 243). É curioso como algumas mentes elitistas esquecem destas fraquezas animais, de como nosso organismo biológico não nos torna diferentes das espécies que se alimentam e defecam.
A mulher do médico representa a luz dos que não vêem. Não se trata do sonho vanguardista que alimenta o pesadelo de que precisamos de uma autoridade que nos ordene e a quem devamos obedecer, mas que cuidará da nossa segurança. Os cegos libertam-se do manicômio, após o incêndio deste e, como o restante da população, precisam aprender a sobreviver. O grupo que está com a mulher que vê se mantém unido. Sabe que isto ampliará as suas chances. Mas será preciso que alguém mande? Quem será o líder. Ora, pelas circunstâncias está claro que o mérito acadêmico não é o melhor critério. A mulher do médico, e não ele, é quem ancora o grupo. Isto não significa que ela se impõe como mais capaz. “Tu não estás cega, disse a rapariga dos óculos escuros, por isso tens sido a que manda e organiza, Não mando, organizo o que posso, sou, unicamente, os olhos que vocês deixaram de ter, Uma espécie de chefe natural, um rei com olhos numa terra de cegos, disse o velho da venda preta. Se assim é, então deixem-se guiar pelos meus olhos enquanto eles durarem”, disse ela (p. 245). São olhos que servem. Muito diferente dos que mandam ou que acreditam que, por ter olhos, devem ter seguidores. Estes pressupõem que a luz sempre estará apenas com eles e que, ainda que alcance os demais, será mais intensa neles.
Como compreende a mulher do médico, o ver não a torna essencialmente melhor do que os demais. Apenas amplia a sua responsabilidade e o sofrer diante do horror que vê. “É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o”, disse (p. 262). A visão e o sentimento do horror pode nos fazer ver quem somos. Como fala a personagem dos óculos escuros: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (Idem).
A leitura deste livro ajuda a compreender melhor o que somos e o animalzinho que se esconde em nosso devaneio, egoísmo e vaidade. “É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver” (p. 283). Poucos vêem e muitos dos que vêem fecham os olhos e tentam apaziguar a sua consciência. Como escreve Saramago: “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (p. 310) E quando verem terão atingido a lucidez. Então, a cegueira mostrará a sua verdadeira face.
* SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Texto publicado em Literatura Política & Sociedade, 13.08.2007.
No Blog do Ozaí
Nenhum comentário:
Postar um comentário