Miguel do Rosário
Não tenho o que comentar sobre essa tragédia ocorrida no Rio. Nem acho que existam explicações satisfatórias. Para mim, é algo que emerge lá do fundo negro e diabólico da alma humana. A única resposta para isso é o amor, a arte, o carinho, a poesia. Não adianta culpar os filmes americanos, a internet, a mídia, o governo, a educação. Esses monstros surgem do nada, imprevisivelmente, nas melhores famílias. Nas cidades mais pacatas e nos países mais desenvolvidos. Infelizmente, um deles nasceu aqui.
Evidentemente, muitas besteiras serão ditas. Preconceitos vêm à tôna. Intelectuais darão opiniões apressadas, porque raramente admitem que não sabem, que estão tão perplexos como nós.
Não sei, realmente, o que dizer. Vou arriscar um poema:
nas entranhas, sufocado pelo sangue,
o verme se agita
sem amor, sem compaixão,
ele simplesmente se agita
e talvez gritasse,
se soubesse gritar
é quase isso, porém.
o berro de um verme
preso no meio das entranhas
ensanguentadas de uma criança
uma criança, meu deus,
tão linda como uma praia,
uma manhã de sol
de temperatura amena
e ar úmido
em frente ao mar sereno
o mar azul e livre
livre qual uma criança
sem entranhas
sem vermes
sem vida
falam em religiões,
em deus,
em doenças psiquiátricas,
mas esquecem do principal
das entranhas sujas
e dos vermes
estranhos que nelas
se debatem, ariscos,
quase felizes em sua agonia
de monstros em seu habitat
não haverá mais belas manhãs,
o Rio perdeu sua inocência
o Rio perdeu o amor
o Rio perdeu a esperança
A cidade se debruça
à bordo de suas montanhas,
vomita sobre todos nós
e depois chora
copiosamente.
chores também, você,
a sua vida perdida
o luto eterno
a morte que nos espreita
sem ligar se o dia é belo
ou se as meninas são belas
o rio morreu nesta quinta-feira
baleado na cabeça
por um psicopata filhodaputa
que pagará no inferno
dez milhões de anos
mastigado lentamente pelo próprio chefe
dos subterrâneos incendiados
inconsoláveis
acordaremos amanhã
semimortos
como zumbis,
e perambularemos pelas ruas
vazias de sentido
como quem vagueia
perplexo
por uma cidade destruída por uma bomba
e ainda cheia de radioatividade
vamos dormir então
por uns bons anos
tornarmo-nos alcóolatras
bater em nossos filhos
enganar os amigos
pois a moral e o amor já não tem sentido
expulsamos os anjos
do paraíso,
e os substituimos
por homens cínicos
e armados
as entranhas já estão corroídas
pelos vermes
pela tristeza
e pela maldade
adentremos o inferno,
as entranhas em fogo
o coração frio
sem ouvir os gritos
das crianças
sem ouvir nosso próprio grito
de desespero
e desesperança
mas depois fugiremos
de novo para cima
para a luz
e costuraremos o abdômem
rompido, por onde elas
as entranhas, nos escapavam
e talvez dormiremos
ao ar livre,
o coração batendo muito forte
por causa da fuga
e pela emoção também
de estarmos vivos
e sermos novamente pessoas boas
cidadãos notáveis
que culpam a mídia e o governo
e dormem um sono pesado
após a cachaça da terça-feira
mas acordarás de madrugada
para vomitar
assim como a cidade
vomita sobre você do alto dos picos da tijuca
então pegará os jornais pela manhã
pingando sangue, e na cozinha,
ralando cenoura e cortando o tomate,
esquecerás dos anjinhos
que nunca leram dante
as mocinhas bonitas
que podiam se tornar suas amigas
daqui a alguns anos.
concentrar-te-ás somente na faca
laminando o tomate
lentamente
cruelmente
eternamente.
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