sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Papa reza na ONU missa de 7º dia do neolibelismo

Papa reza na ONU missa de 7º dia do neolibelismo

publicado 25/09/2015
Teto, trabalho e terra!
papa francisco na onu
(Foto: Tony Gentile/Reuters)
Conversa Afiada reproduz histórico pronunciamento do Papa Francisco I na ONU, onde tratou:

- da reforma do Conselho de Segurança da ONU e do FMI para que sejam mais representativos;

- os programas do FMI sufocam;

- da exclusão social, como uma negação dos Direitos Humanos;

- os pobres são descartados, vivem do descarte e sofrem com o abuso do meio ambiente;

- teto, terra e trabalho para todos!;

- pregou a proteção aos descartados do Norte de África, do Oriente Médio;

- com a proliferação das armas nucleares, haverá as Nações Unidas pelo Medo;

- fez votos de que o acordo entre os Estados Unidos e o Irã dê certo;

- denunciou o narcotráfico, uma outra classe de guerra, que desmoraliza as instituições;

- o verdadeiro perigo está no homem, disse Paulo VI;

- e citou o poeta argentino Martín Fierro:

"se os homens pelejam entre si, os que estão fora os devoram".


Senhor Presidente,

Senhoras e Senhores,

Bom dia!

Mais uma vez, seguindo uma tradição de que me sinto honrado, o Secretário-Geral das Nações Unidas convidou o Papa para falar a esta distinta assembleia das nações. Em meu nome e em nome de toda a comunidade católica, Senhor Ban Ki-moon, desejo manifestar-lhe a gratidão mais sincera e cordial; agradeço-lhe também as suas amáveis palavras.

Saúdo ainda os chefes de Estado e de Governo aqui presentes, os embaixadores, os diplomatas e os funcionários políticos e técnicos que os acompanham, o pessoal das Nações Unidas empenhado nesta LXX Sessão da Assembleia Geral, o pessoal de todos os programas e agências da família da ONU e todos aqueles que, por um título ou outro, participam nesta reunião. Por vosso intermédio, saúdo também os cidadãos de todas as nações representadas neste encontro. Obrigado pelos esforços de todos e cada um em prol do bem da humanidade.

Esta é a quinta vez que um Papa visita as Nações Unidas. Fizeram-no os meus antecessores Paulo VI em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995 e o meu imediato antecessor, hoje Papa emérito Bento XVI, em 2008. Nenhum deles poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caracterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, superação de qualquer limite natural à afirmação do poder. Uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades.

A história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas, que festeja nestes dias o seu septuagésimo aniversário, é uma história de importantes sucessos comuns, em um período de incomum aceleração dos acontecimentos. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras aquisições em todos os setores do âmbito internacional das atividades humanas.

Todas estas realizações são luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos. Apesar de serem muitos os problemas graves por resolver, todavia é seguro e evidente que, se faltasse toda esta atividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades. Cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização.

Por isso, presto homenagem a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes setenta anos. Em particular, desejo hoje recordar aqueles que deram a sua vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação.

A experiência destes setenta anos demonstra que, para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objetivo final que é conceder a todos os países, sem exceção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões. Esta necessidade duma maior equidade é especialmente verdadeira nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises econômicas. Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento. Os Organismos Financeiros Internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência.

A trabalho das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar onipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efetiva distribuição do poder (político, econômico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois setores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e econômicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão.

Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente», por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a ação humana deve reconhecer e respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico» (Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção deste ambiente. Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas. Nós cristãos, juntamente com as outras religiões monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81).

O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo fato de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão econômica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente. Estes fenômenos constituem, hoje, a difundida e inconscientemente consolidada «cultura do descarte».

O caráter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a este respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes. A adoção da «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável», durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efetivos.

Todavia não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, mesmo se constituem um passo necessário para a solução dos problemas. A definição clássica de justiça, a que antes me referi, contém como elemento essencial uma vontade constante e perpétua: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efetiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenômeno da exclusão social e econômica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos.

A multiplicidade e complexidade dos problemas exigem servir-se de instrumentos técnicos de medição. Isto, porém, esconde um duplo perigo: limitar-se ao exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos – metas, objetivos e indicadores estatísticos –, ou julgar que uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios. É preciso não perder de vista, em momento algum, que a ação política e econômica só é eficaz quando é concebida como uma atividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e que tem sempre presente que, antes e para além de planos e programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se veem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer direito.

A fim de que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam atores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) –, que é assegurado antes de mais nada respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente.

Ao mesmo tempo, os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efetiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade do espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e os outros direitos civis.

Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação. Ao mesmo tempo, estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar o direito à existência da própria natureza humana.

A crise ecológica, juntamente com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana. As nefastas consequências duma irresponsável má gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder, devem constituir um apelo a esta severa reflexão sobre o homem: «O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza» (BENTO XVI, Discurso ao Parlamento da República Federal da Alemanha, 22 de setembro de 2011; citado na Enc. Laudato si’, 6). A criação vê-se prejudicada «onde nós mesmos somos a última instância (…). E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos» (BENTO XVI, Discurso ao clero da Diocese de Bolzano-Bressanone, 6 de agosto de 2008; citado na Enc. Laudato si’, 6). Por isso, a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher (cf. Enc. Laudato si’, 155) e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões (cf. ibid., 123; 136).

Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata atuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra» (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo) e «promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade» (ibid.) corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos.

Para isso, é preciso garantir o domínio do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental. A experiência destes setenta anos de existência das Nações Unidas, em geral, e, de modo particular, a experiência dos primeiros quinze anos do terceiro milênio mostram tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico.

O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Contrasta fortemente com estas afirmações – e nega-as na prática – a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares. Uma ética e um direito baseados sobre a ameaça da destruição recíproca – e, potencialmente, de toda a humanidade – são contraditórios e constituem um dolo em toda a construção das Nações Unidas, que se tornariam «Nações Unidas pelo medo e a desconfiança». É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.

O recente acordo sobre a questão nuclear, numa região sensível da Ásia e do Médio Oriente, é uma prova das possibilidades da boa vontade política e do direito, cultivados com sinceridade, paciência e constância. Faço votos de que este acordo seja duradouro e eficaz e, com a colaboração de todas as partes envolvidas, produza os frutos esperados. Nesta linha, não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional. Por isso, embora desejasse não ter necessidade de o fazer, não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu patrimônio cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão.

Estas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos. Nas guerras e conflitos, existem pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem. Seres humanos que se tornam material de descarte, enquanto nada mais se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.

Como pedi ao Secretário-Geral das Nações Unidas, na minha carta de 9 de agosto de 2014, «a mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas» e para proteger as populações inocentes.

Nesta mesma linha, quero citar outro tipo de conflitualidade, nem sempre assim explicitada, mas que inclui silenciosamente a morte de milhões de pessoas. Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenómeno do narcotráfico. Uma guerra «suportada» e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção, que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.

Comecei a minha intervenção recordando as visitas dos meus antecessores.

Agora quereria, em particular, que as minhas palavras fossem como que uma continuação das palavras finais do discurso de Paulo VI, pronunciadas quase há cinquenta anos, mas de valor perene. «Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade» (Discurso aos Representantes dos Estados, 4 de outubro de 1965, n. 7).

Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: «O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas» (ibid.).

A casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada.

Tal compreensão e respeito exigem um grau superior de sabedoria, que aceite a transcendência, renuncie à construção duma elite onipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e coletiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar» (ibid.).

O Gaúcho Martín Fierro, um clássico da literatura da minha terra natal, canta: «Os irmãos estejam unidos, porque esta é a primeira lei. Tenham união verdadeira em qualquer tempo que seja, porque se litigam entre si, devorá-los-ão os de fora».

O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta um crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo «todo o fundamento da vida social» e assim «acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses» (Enc. Laudato si’, 229).

O tempo presente convida-nos a privilegiar ações que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 223). Não podemos permitir-nos o adiamento de «algumas agendas» para o futuro. O futuro exige-nos decisões críticas e globais face aos conflitos mundiais que aumentam o número dos excluídos e necessitados.

A louvável construção jurídica internacional da Organização das Nações Unidas e de todas as suas realizações – melhorável como qualquer outra obra humana e, ao mesmo tempo, necessária – pode ser penhor dum futuro seguro e feliz para as gerações futuras. Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado interesses setoriais e ideologias e procurarem sinceramente o serviço do bem comum. Peço a Deus onipotente que assim seja, assegurando-vos o meu apoio, a minha oração, bem como o apoio e as orações de todos os fiéis da Igreja Católica, para que esta Instituição, com todos os seus Estados-Membros e cada um dos seus funcionários, preste sempre um serviço eficaz à humanidade, um serviço respeitoso da diversidade e que saiba potenciar, para o bem comum, o melhor de cada nação e de cada cidadão. Que Deus os abençoe!

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A imprensa e a desconstrução do Conhecimento

A imprensa e a desconstrução do Conhecimento, por Luciano Martins Costa

“Nunca leio jornais, apenas os folheio. A manchete basta como notícia, o conteúdo dela está sempre ultrapassado e é bem conhecido” 
(Connie Palmen, escritora holandesa , em “As Leis”, livro premiado com o European Novel of the Year Award, 1997)
Cap. 1
Os meios de comunicação estão destruindo o mundo real, pela imposição de simulacros que fantasiam a própria existência, e preparam o futuro de um consenso absoluto, cenário apropriado para o triunfo da estupidez. Ao aceitar o jogo dos meios eletrônicos, os jornais e as revistas renunciam à vanguarda do processo civilizatório e se submetem ao jugo da cultura pop. O avanço acelerado da Internet e a presença impositiva do computador no cotidiano da sociedade são apenas fenômenos naturais de ocupação física do vácuo deixado pelos meios escritos ao abdicar do seu papel. Hoje e daqui por diante, o meio será a mensagem, e a mensagem é a simulação. A nova linguagem criada pelo casamento do computador com a teletransferência total é um desafio mortal para a alma dos meios escritos: a reflexão. Isso porque somos condicionados à resposta imediata, à racionalização alimentada pelo impacto emocional da mensagem. É preciso, portanto, reinventar a linguagem do Jornalismo, tarefa que a Imprensa tradicional não pode, não quer e não tem qualificação para assumir. A Imprensa estará morta num prazo muito curto, a menos que busque o conflito, semeando a dúvida e o questionamento pela ação guerrilheira no coração do inimigo da civilização – a certeza. O conhecimento construído, diariamente, por meio das sucessivas edições de notícias, é na verdade um processo de manipulação da realidade que produz ficção. Por exemplo, a Imprensa prefere fazer escândalo com cada crime que move emoções do que acompanhar e procurar diagnósticos para a violência endêmica na sociedade, principalmente aquela praticada sistematicamente pelo aparato de segurança do Estado.
A desaparição do conhecimento na forma como nos é familiar, à última geração educada na linguagem escrita, acontece na proporção e velocidade em que os meios se confundem: o conhecimento está sendo substituído pelo entretenimento. O ser humano, quanto mais civilizado se considere, mais e mais se vê propenso a aceitar como real o simulacro de conhecimento que se propaga por todos os meios. Tornou-se consenso que se vive desde a década de 1980 em um universo pós-moderno, cuja característica fundamental seria a descaracterização dos signos. Os meios convencem o receptor de que é possível recriar os significados no exato momento em que a comunicação se processa, e que ele, receptor, torna-se autor individual de uma nova História ao participar dessa simulação gerada pela substituição progressiva dos significados por metáforas aleatórias. Contraditoriamente, a primeira simulação se processa no eixo da notícia, que é o veículo transcendental do conhecimento. Mais ainda do que a televisão, os meios impressos são os portadores eficazes dessa semiologia bizarra, tanto mais nociva quanto mais se crê na palavra impressa. A ilusão que os meios propagam, de que o indivíduo “informado” nesses termos tem mais valor na sociedade, corrói não apenas a realidade, substituindo-a por simulacros desconexos entre si, como, em conseqüência, vai despindo de significados o próprio discurso baseado na palavra. Esse processo, que consiste em representar e significar idéias inconscientes por meio de outras idéias inconscientes ou “conceitos de fantasia”, não apenas está na raiz do atual estágio de ignorância arrogante que transpira da maioria dos textos de Imprensa, como vai progressivamente transformando a própria palavra numa excrescência quase fisiológica. Nem a literatura escapa dessa maldição, na medida em que editores e escritores se sentem compelidos, às vezes prazerosamente, a aceitar e justificar rótulos e “tendências” selecionados segundo valores de momento. Nem se pode dizer que a imprensa seja refém ou vítima de uma revolução tecnológica que acelera as comunicações num ritmo jamais imaginado pelo senso comum. Não há, nunca houve, o alardeado conflito de meios: a Imprensa abdicou de sua alma, a qualidade de produzir reflexão, antes mesmo de a televisão ou a Internet serem tidas como ameaças ao negócio de distribuir informação pela impressão de palavras e imagens. A Imprensa é, antes de tudo, cúmplice e autora do processo que vem reduzindo celeremente sua relevância.
Cap. 2
Esse tráfico simoníaco das essências da comunicação humana está criando uma nova semântica em praticamente todos os idiomas em cujos territórios a Imprensa tem sido instituição culturalmente importante. Não apenas o computador e a Internet têm dado origem a uma linguagem específica, como decorrência natural de sua interferência nos modos de fazer registros e trocas e da necessidade de descrever o universo virtual: os agentes dos meios escritos, a quem competiria resguardar os valores e a semântica do mundo real, se antecipam e decretam o fim do substantivo. O êxtase da adjetivação nos lança no interior de um globo habitado por personalidades auto-referentes e eventos repetitivos, ambiente do qual a originalidade e a criatividade estão banidas, no qual o bobo-da-corte vale tanto quanto o rei, num simulacro de democracia em que o poder real se dilui na impossibilidade de se reconhecer interesses coletivos entre a multiplicidade dos desejos individuais e verdades eventuais. Vivemos, como antecipou nos anos 70 o filósofo transnacional Villén Flusser, o fim das relações interpessoais pela impossibilidade da caracterização dos interlocutores: as pessoas estão sendo substituídas pelos eventos. Segundo Flusser, ao colocar as pessoas em movimento constante, os meios dissolvem a individualidade a tal ponto que já não a reconhecemos senão sob a forma de notícia, ou de evento público. O evento torna-se simulacro de relação social, as emoções se banalizam, e já nem se pode falar em um movimento dialético dos tempos, uma vez que a teia de simulações não admite o compromisso com idéias. Falta-lhe materialidade e, no ambiente culturamente difuso que esse universo origina, tudo pode ser qualquer coisa. Basta que os meios o referendem, e aquilo que antes era banal se torna essencial, aquilo que era fundamento se transforma em banalidade. A especulação é tratada como ciência, o boçal é ungido sábio, a violência vira entretenimento Flusser gostava de destacar a diferença entre gesto e atitude como exemplos daquilo que denominava “movimentos-signo”, para ensinar aos seus alunos, candidatos a jornalistas, publicitários, cineastas, um princípio que considerava essencial para aqueles que pretendiam fazer parte do “povo do meio”. Para estes, o gesto seria um luxo que jamais se poderiam conceder. Para estes, o único movimento-signo aceitável seria a atitude, porque afirmativo e sempre carregado de um “significado ativo”. Jamais o gesto, jamais o movimento-signo vazio de ação. Certa vez, durante uma aula na Fundação Armando Álvares Penteado, Flusser derrubou uma mesa e quebrou seu cachimbo ao encenar, sem palavras, a diferença entre os dois movimentos. “Sob ditadura, alienar-se é subverter”, afirmou. O linguista Antônio Sodré Cancela Cardoso, autor de “(O) Culto Idioma”, propôs uma sintaxe de resistência contra a deterioração do Português nos meios de comunicação.
Ele decompõe os fonemas e os recompõe em novos significados, tomando como guia sua configuração gráfica e os sons que representam. Ele pretendeu formular um antídoto contra o empobrecimento da língua, oferecendo ao “povo do meio” um jogo pelo qual o ato de escrever se tornasse uma permanente remissão às fontes de cada palavra, ainda que essas origens pudessem ser reinventadas a cada ato de escrever. De certa maneira, a Imprensa se apropria perversamente do jogo proposto por Sodré Cardoso: o idioma é reinventado a cada edição, ao sabor dos eflúvios da moda, simulacro de ideologia nestes tempos de massificação. O compositor é semi-analfabeto? Não, trata-se de um reinventor da linguagem, ícone da liberdade contra os grilhões da gramática. O artista não estudou composição? Não, sua genialidade está exatamente na coragem de romper os limites do visível e propor uma nova pulsação para as tonalidades, e estamos conversados. Saiu no jornal, foi publicado na revista. Não haverá quem diga que o rei está nu, e, olhando de perto, não é grande coisa.
Cap. 3
A apropriação, pelos meios impressos, da linguagem e, em seguida, da elasticidade de valores da televisão, deu origem a um processo de banalização dos fatos sociais, que passaram a ser tratados sob o foco da emoção imediata e breve. O uso corriqueiro de expressões inadequadas pelos meios impressos ou a leviandade com que se apropriam de vocabulários de moda vem conferindo certo tipo de legitimidade à linguagem televisiva, da qual se espera efeito imediato de fácil assimilação e rápida disseminação, ao contrário da comunicação escrita, destinada a provocar reflexões e efeitos de longa duração. Além de causar uma desvalorização progressiva da linguagem escrita, pela superposição de significados, às vezes contraditórios, a uma mesma expressão, essa prática eleva à condição de formadores de opinião protagonistas cuja principal qualificação é justamente a falta de consistência opinativa.
Não que a Imprensa devesse ignorar a moda como fenômeno social ou assumir uma posição de Quixote contra os moinhos de vento da televisão e demais meios dedicados ao trato da imagem. Trata-se, pelo contrário, de manter na pauta os fatos ligados ao mundo do entretenimento, mas para buscar uma compreensão mais profunda das mudanças sociais provocadas e permitidas pelo ingresso de novos meios ao mundo da comunicação, sem, no entanto, abdicar do senso crítico. A credibilidade, que sempre foi a razão principal da relevância da Imprensa, se coloca sob risco quando os meios impressos se deixam “colonizar” pelos meios de imagem e som não apenas em termos de linguagem, mas por conseqüência, também em termos de valores. Ao assumir a celebridade, qualidade intrinseca dos meios televisivos, como valor superlativo e sinônimo incondicional de sucesso, a Imprensa não só promove uma distorção no seu próprio significado como empreendimento socialmente relevante, mas também gera nos profissionais formados sob o signo da TV uma tendência a buscar em primeiro lugar o destaque pessoal, antes mesmo das qualificações essenciais para um bom jornalista. Muitas carreiras construídas a partir dessa perspectiva já alteram o perfil profissional da Imprensa em muitos países. O repórter L. Bernstein, co-autor do livro “Todos os Homens do Presidente”, sobre o episódio de Watergate, tem feito referência a distorções desse tipo e à disseminação daquilo que denomina “valores Murdoch”, como referência ao jornalismo de muitos escândalos e pouca responsabilidade praticado por jornais “tablóides” como os de propriedade do empresário australiano Rupert Murdoch. Não por acaso, a onda de indignação contra os “papparazzi” acusados no caso da morte da princesa Diana acabou atingindo indiscriminadamente todos os jornais e a imagem pública dos jornalistas.
Na confusão gerada pela própria Imprensa ao falhar em seu dever de educar, ou de informar didaticamente, o público reage como lhe foi ensinado: genericamente, emocionalmente, devolvendo sob a forma de intolerância o que faltou de reflexão no processo de comunicação. O filósofo brasileiro Sérgio de Gouvêa Franco, embora militante cristão e, como tal, preso a uma análise que tem como pressuposto a prevalência de um processo civilizatório de iniciativa e fundamentação divinas, abre caminhos para a percepção desse fenômeno que poderíamos qualificar como de desconstrução da Imprensa. Em seu livro intitulado “Hermenêutica e Psicanálise na Obra de Paul Ricoeur”, Gouvêa Franco observa que, segundo Freud, Nietzsche e Marx, vivemos “em uma situação social que camufla, disfarça e esconde”, para em seguida oferecer uma parábola sobre os meios ao confrontar a notícia da morte de Deus com a realidade da permanência desse mesmo Deus depois de Zaratustra. O filósofo questiona, então, o portador da notícia, o autor da “reportagem”sobre a morte de Deus, com a lembrança de que a repercussão do fato noticiado obscurece a compreensão do próprio fato e com uma prospecção arqueológica das razões anteriores à notícia, que ficaram soterradas pelas interpretações decorrentes. A reflexão cabe na análise da Imprensa tanto mais quando se recorda que Ricoeur é também, lembra Gouvêa Franco, teólogo, educador e psicanalista: de todas estas fontes os meios de comunicação têm se apropriado para dar valor de credibilidade e atualidade ao que se publica.
Cap. 4
A apropriação de disciplinas ou de partes delas, prática comum na história dos meios de comunicação, ganha, com o processo crescente de massificação, proporções tais que se torna difícil encontrar os limites ou diferenças entre elas. A linguagem psicanalítica se mistura a expressões de linhas pedagógicas distanciadas nas perspectivas de tempo e das diversas realidades culturais, a teoria marxista se transforma em convenção inócua, a filosofia e a história desaparecem sob a avalancha de citações fora de contexto utilizadas para justificar opiniões tomadas a priori e sempre destinadas a reafirmar a irrealidade. Nesse ambiente sem paradigmas, pode-se questionar até que ponto as doutrinas e disciplinas que formam a história da evolução do pensamento humano têm contribuído de fato para o processo civilizatório, uma vez desconstruídas pelo meio. Ou, numa abordagem a partir do meio, está explícito que até o pensamento precisa ser referendado pelos meios para existir. Por mais que essa cultura mediática renegue o contraditório, não há como dissimular que sua essência é uma contradição: no ambiente em que se supõe predominar o liberalismo mais absoluto não há lugar para o livre-pensar. Só é reconhecível aquilo que traz ou foi precedido por suas próprias referências, no círculo acrítico que se formou. Nascida no berço do livre-pensamento, a Imprensa agoniza no leito politicamente correto do pós-modernismo, que insiste em chamar de pós-modernidade. O meio rejeita a idéia de uma História em curso, decreta o fim da ideologia e se deleita com a hipótese da perenidade que dura uma edição. Talvez porque seus agentes, incapazes de entender aquilo que não seja relatado linearmente, tenham necessidade de criar uma nova hermenêutica que dispensa a dialética e o controverso, pela qual se revela uma erudição feita de simulacros, mas ainda reconhecível no ambiente mediático sempre autorreferente. Na verdade, a circularidade desse sistema de valores remete a sociedade mediada de volta ao Renascimento, mais propriamente ao período do Idealismo, uma vez que a suposta ausência de preconceitos constitui de fato um predominante e fatal preconceito: o de que só existe aquilo que é noticiado. O aspecto religioso de que se revestia a criação artística na visão dos críticos idealistas se repete na era da massificação, quando tudo exige a unção do meio e o ritual da celebrização. Todas as qualidades desaparecem quando a celebridade se impõe. Depois que se torna célebre, todo fato, pessoa ou instituição perde as características de que era formado para se tornar grandiosa e simplesmente uma celebridade. Tudo se torna evento, e aquilo que era qualidade deixa de existir. Será preciso, daí por diante, justificar a permanência sob as luzes do meio com mais movimento, e sábio será aquele ser mutante que souber eleger entre os rótulos disponíveis aquele que justifique sua permanência entre os eleitos. Melhor: que o eleve à grandeza de musa, ícone, referência.
Um dos fenômenos que se pode prever nesse contexto é o sequestro do campo intelectual: a imprensa vai se transformar num sistema totalitário a determinar o que é válido ou não como arte, música, literatura, pensamento. Assim, se sua veia musical está seca, escreva um livro sobre sua veia musical. Deixe que digam, que pensem, que falem que se trata de uma biografia, depois escreva artigos e conceda entrevistas revelando que na verdade é pura ficção, ou que você acaba de inventar a biofictiografia, explicando que o trabalho artístico (já, então, ninguém duvidará de que se trata mesmo de arte) é uma expressão de uma idéia pré-existente. Se algum chato ainda se lembrar de que isso soa a teologia, não perca a oportunidade para fazer polêmica. Diga que você é pós-estruturalista e que na verdade seu livro é a desconstrução da sua obra anterior, que, reconstruída em uma expressão diferente, constitui uma obra nova e inovadora. Anuncie, então, seu novo disco, que, naturalmente, será uma referência ao seu livro. Só não cometa o pecado de confessar que sua veia musical estava vazia, que você gastou seu talento inventando movimentos, que você acabou se transformando em uma eventualidade e que perdeu importância: todos aqueles críticos que vivem na sua órbita irão odiá-lo por ter furado a pauta. Você se tornou uma unanimidade. Você está morto.
*Este texto foi produzido originalmente no dia 25 de fevereiro de 1998. Para os amigos que cobram novas manifestações de um ex-observador da Imprensa, um texto ensaiado em 1998 e atualizado em 2012.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O Grito de um Inocente

O grito de um inocente e a vida atrás das grades, por Wellington Araujo de Arruda

O Jornal de todos Brasis
Do Justificando
 
Wellington Araujo de Arruda
 
Desde que iniciamos nossa carreira no Direito Criminal, visitar cadeias públicas, presídios e centros de detenções provisórias tem sido nosso cotidiano, e nesse mister, todo tipo de realidade temos visto.
Nos deparados com presos contendo doenças graves e contagiosas sem qualquer acompanhamento médico, falta de alimentação, alimentos azedos, falta de remédios, falta de trabalho (a grande maioria quer trabalhar), falta de espaço para estudo (a grande maioria não tem estudo e quer estudar), falta de água potável, execuções penais esquecidas e abandonadas, pessoas enganando-os com mentiras e promessas impossíveis para angariar lucro, muitas vezes à custa do sofrimento de toda uma família, enfim, toda sorte de ocorrências temos acompanhado em nosso cotidiano.
Visitar clientes em cadeias, presídios ou CDP's sempre vem acompanhado de ensinamentos e jamais poderá ser considerada rotina. Conversamos com os detentos e ouvimos suas angústias, suas necessidades, seus anseios, seus "problemas" mais próximos, ouvimos o dia-a-dia de suas rotinas e damos-lhes um pouco do pão da atenção, pois sabemos que por vezes eles não têm sequer com quem conversar.
Em uma dessas visitas recebemos um recado que um interno queria conversar conosco e perguntou se poderíamos "sacá-lo" (pedir na portaria para levá-lo ao parlatório), confirmado com nosso cliente que o rapaz estava sem Advogado aceitamos conversar com este rapaz.
Em apenas dez minutos de conversa concluímos que tínhamos alguns amigos em comum. O preso era um instrutor de tiros, que já havia dado aulas para muitos indivíduos do exército brasileiro e também da Polícia Civil de São Paulo. Um instrutor que fez de seu "hobby" sua profissão, tornou-se empresário do ramo, ainda assim, como muitos, abandonado.
Contou seu caso detalhadamente, o que nos fez ter certeza que jamais poderia ter sido denunciado pelo artigo em que foi preso (tentativa de homicídio). Já estava um longo período preso naquele CDP e sequer tinha sido intimado da denúncia para a apresentação da resposta à acusação e já sofria todas as agruras do ambiente deletério do cárcere.
Não sabia como estava seu processo, não sabia sequer se existia um processo. Sua família ainda estava na luta para conseguir fazer a carteira de visitação e nunca havia recebido visita de qualquer Advogado, Juiz, Promotor ou Capitão.
Após nossa longa conversa, ele me entregou uma carta e pediu para que eu pensasse no que estava escrito ali. Quando cheguei em casa naquele dia, depois de um bom banho quente, com shampoo, sabonete, cremes e tudo o que um homem livre pode ter, sentei em uma poltrona confortável e li a carta que me foi entregue. Acostumado a conviver com o sofrimento do cárcere, ao ler a carta, passei a conviver com uma nova reflexão, e esta, compartilho com todos. Abaixo o texto da carta "ipsis litteris".
"Desde pequeno sempre ouvi falar do inferno. O lugar aonde (sic) vive o Diabo, o Demônio, o mau (sic). Para onde vão todas as almas ruins, pecadoras, para queimarem no fogo eterno como forma de pagar por seus pecados, seus erros cometidos em vida.
Porém, também já ouvi falar como 'o inferno começa aqui', ou seja, em vida, que não precisamos morrer, transpassarmos limites da existência terrena, da carne, para experimentá-lo.
Num primeiro momento, não sei se discordo ou concordo, porém, analisando o cárcere em si, a cadeia, onde me encontro, me pergunto sobre qual deles é realmente o pior, o inferno espiritual ou este terreno, criado pelos homens para punir em vida os que cometem crimes, ou simplesmente são acusados de cometê-los. Se forem justos não sei, mas a analogia se torna pertinente entre ambos.
A primeira analogia que faço é que para ir ao inferno espiritual, temos que passar pelo 'julgamento final', onde Deus seria o Juiz e, segundo consta, Jesus, o Advogado, seria o mais justo possível.
Na vida terrena, podemos ir para o inferno, a cadeia, e lá ficar, bem antes de qualquer julgamento. Mas, ao sermos julgados, homens e mulheres serão nossos Juízes, tão passíveis de erros e falhas como eu, como nós.
No julgamento terreno, nosso destino, nossa vida, nossa condição humana e toda uma história de vida acabam se resumindo a uma pasta com papéis no fórum. O processo.
Agora me pergunto se realmente o inferno espiritual é pior, ou menos pior que o inferno terreno, este, a cadeia.
Creio serem os sofrimentos no mínimo iguais, mas na grande maioria das vezes o inferno terreno deve ser pior. Aqui seres humanos são jogados 'ao léu', esquecido, sem família, sem Advogado, sem ninguém que os represente ou mesmo se importe com eles.
Vagam o dia inteiro, andam em círculo, num circuito repetitivo, sem motivo, sem rumo, sem vida, como 'almas penadas' numa casa assombrada.
O dia se resume ao que comem, acordar e dormir, nenhuma notícia, nenhuma esperança, nenhuma vida parece emanar daqueles corpos.
Há ainda os doentes mentais, que parecem verdadeiros zumbis perambulando como em um filme de terror. Geralmente estão fétidos pela falta de banho e outros produtos básicos de higiene.
Existem os indivíduos com AIDS, tuberculose, deficientes físicos, peste bubônica, todos literalmente esquecidos pelas famílias e ignorados pelo estado e pela sociedade.
As celas onde todos se acomodam em superlotação são velhas, sujas, úmidas, lembram muito os calabouços medievais, um verdadeiro 'umbral' entre vivos.
A falta de apoio, remédios, assistência médica e jurídica adequadas agravam ainda mais o nefasto quadro.
Certo dia, depois da visita, um preso, talvez angustiado por ser esquecido, sozinho, encostou-se à parede do pátio e passou a 'gillete' no próprio pescoço. Quando vi aquilo olhei nos olhos dele, pareciam vazios, sem vida, sem esperança, enquanto o sangue esguichava de sua veia.
Outros presos o socorreram rapidamente tentando estancar o sangramento com um pano e encaminharam-no para a enfermaria, nunca mais o vimos. Em outra oportunidade vi um indivíduo cortar o próprio pulso. Outro morreu num infarto, na frente de todos, em pleno dia, sem suporte, sem ajuda, sem socorro.
Há ainda as humilhações constantes, falta de alimentação devida... aqui neste inferno terreno o indivíduo descobre o que é verdadeiramente o termo 'passar fome'.
Para a alegria e lembrança da vida, temos o dia de visita, que nos é como um alento. Poder rever nossos parentes e ter notícias do 'lado de fora'. Esse alívio no meio de tanto sofrimento no inferno terreno deve ser como uma oração a uma alma que fazemos para o plano espiritual.
Começo a me questionar de fato sobre o inferno espiritual, onde, segundo consta, apenas queima-se a alma por toda a eternidade. Qual dos dois é realmente pior? Depois de tudo o que falei, ainda há espaço para temer o inferno espiritual e o diabo?
Será que as almas se acostumariam com o fogo eterno assim como em vida acostuma-se com a fome, a miséria, a humilhação, a corrupção e a injustiça?
Tenho a impressão que este inferno é tão ruim que nem o demônio fica aqui, apenas vem, faz o seu serviço e vai embora para o inferno dele, bem mais ameno que este.
Aqui ainda há outro tipo de sofrimento, para mim, o pior deles, a pior das dores, uma dor que não dói no corpo, mas na mente, na alma, que é a saudade, as boas lembranças que temos; nossas melhores memórias; nossos melhores momentos de toda uma vida se tornam nossos piores pesadelos, nos atormentam dia e noite. Filhos, família, a ausência deles gera uma dor que não dá para medir.
Parece queimar a alma, torce o coração, é a que mais dói. Tenho a impressão que nunca vai acabar, que é uma ferida que nunca se fechará. Essa dor me faz concluir que não há felicidade onde impera a saudade.
Tudo isso parece tornar o inferno espiritual um 'parque de diversões', tamanho sofrimento aqui dentro. Tenho a impressão que não temos saída, que jamais se abrirão as portas para nossa saída, que a liberdade nunca chegará. A inércia do sofrimento, a letargia da justiça e tudo mais nos leva a ver a morte como um largo portão de saída, para muitos, o único. A passagem desse inferno vivido para o outro mais 'leve', o espiritual.
Como se pode notar, a morte sempre nos ronda, nos flerta. Aqui começamos a vê-la com outros olhos, nossa ótica muda sobre diversos assuntos, inclusive como vemos o mundo, pois esse inferno real passa a ser nosso mundo, ainda que nada tenhamos feito para cair aqui.
Na medida em que os dias passam, sem volta, a saudade e a angústia aumentam, a esperança diminui e assim a vida se vai, dia após dia, num cotidiano imutável e maldito.
A morte... uma saída... sempre ali, se pensarmos bem, já estamos mortos. Mortos para a vida fora daqui, já que lá fora não existimos mais, somos apenas lembranças, assim como os mortos de fato.
Agora, o que é realmente o inferno ou a morte: tudo se confunde, o sofrimento agudo do ser acaba como uma amálgama, aonde tudo se funde.
Agora pergunto, e Deus? Aonde ele se encaixa? Onde está? Dizem ser onipresente, que está em todos os lugares, menos no inferno, já que lá é exclusividade do diabo. Será que o inferno terrestre é igual? Se o próprio diabo não fica aqui, por que Deus ficaria?
Só me resta mesmo esperar o que virá primeiro. Será a morte? será Deus? será o inferno?
Hoje rezei para Deus pedindo a morte, pedindo para conhecer o inferno espiritual, aquele de fogo. Que assim seja, porque se estou passando por este, aquele será fácil."
Welington Araujo de Arruda é advogado graduado em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Combate à Lavagem de Dinheiro e Tráfico de Seres Humanos, ambos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, Órgão Vinculado ao Ministério da Justiça; Especialista em História da Filosofia pela PUC/SP; Pós graduando em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Paulista de Direito.