segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Golpistas jogam um jogo de vida ou morte.

Golpistas jogam um jogo de vida ou morte, por Saul Leblon

O Jornal de todos Brasis
Enviado por Webster Franklin
Da Carta Maior
Saul Leblon
À medida em que apodrece a reputação dos centuriões do golpe (Cunha, Nardes, Agripino, Aéreo Neves), os golpistas jogam um jogo de vida ou morte. 
por: Saul Leblon
O país vive horas cruciais. O assalto conservador ao poder joga uma cartada de vida ou morte contra o relógio político nos próximos dias.

À medida em que apodrece a reputação de seus centuriões, e os savorolas da ética entram em combustão explosiva  --caso dos homens-tocha Cunha, Agripino, Nardes, Aéreo Neves etc, resta-lhes apostar tudo no estreito espaço de tempo entre a desmoralização absoluta e a capacidade residual de articular o golpe.
Arqueado sob R$ 31 milhões em depósitos suíços, segundo a Folha, Cunha negociou com a hesitação golpista: em troca do pescoço, articulou uma operação casada com o PSDB.

Tucanos salvam a aparência pedindo seu afastamento –‘para que possa exercer seu direito constitucional à ampla defesa’. Em troca, o personagem que não tem mais nada a perder acelera a operação do impeachment, como última estaca de sobrevivência antes do abismo.

A sofreguidão avança de faca na boca.

Um colunista de Veja é  transferido para O Globo; estreia numa hora em que o golpismo se enlameia;  a ‘república de Curitiba’ vaza para ele denúncia exclusiva do delator Fernando Baiano... contra filho de Lula.

Já serviu para deslocar a manchete de Cunha para o segundo plano na primeira página do isento veículo carioca.

Vai por aí a coisa.

Seja qual for o seu desfecho, a encruzilhada em que o golpismo trata a democracia como um estorvo exige respostas contundentes.

Passa da hora de o campo progressista superar sectarismos e prioridades corporativas para enxergar a floresta além da clareira particular do seu conforto.

O que se desenha são as provas cruciais da nação brasileira no século XXI.

É imperioso manter o país a salvo de forças incontroláveis que atrelaram seu destino a uma disjuntiva em que, para vencerem, a sociedade terá que perder o rumo, o futuro e a esperança.

Se pensar pequeno, o Brasil corre o risco de ser sequestrado pelo moedor sem termo.

A sorte de sua gente, o destino do seu desenvolvimento enfrentam uma sobreposição de crises cujo desfecho terá repercussões profundas e duradouras.

Um ciclo de expansão se esgotou, um outro pede para nascer.

Pendências novas e antigas se misturam em meio a um cenário mundial adverso.

A velocidade imprevista da transição chinesa torna a neblina ainda mais densa.

É como se a viga-mestra que escorava uma época tombasse.

O motor asiático investia, em média, 45% do PIB; importava outros 10% em matérias-primas para saciar sua fornalha.

O velocímetro dessa máquina baixou abruptamente, de 11%, para perto de 6% ao ano.

A freada tempestiva sugere que poderá recuar ainda mais.

O tranco espremeu as cotações das commodities, rebatendo na hesitante recuperação europeia e, por tabela, enfraquecendo a norte-americana.

Fragilidades antecedentes, semeadas em décadas de desregulação neoliberal das finanças  e do mundo do trabalho, condensaram-se nesse ambiente pantanoso.

Falta demanda porque falta salário, que inexiste porque o emprego é precário, e os sindicatos foram desossados porque o guarda-chuva partidário e ideológico dos assalariados rendeu-se ao veredito neoliberal de miss Thatcher -- 'there is no alternative'.

Vive-se a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929. E não é por acaso.

Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho nesse período mostra agora a sua falta.

Sobram paradoxos.

O da superprodução de capital fictício, em metástase reprodutiva, o mais evidente deles.

Seu contraponto histórico é a anemia do investimento e do emprego.

Ficções de livre comércio rondam esse cenário.

Livre comércio em condições de contração sistêmica?

Esse é um jogo de soma zero em que apenas se transfere demanda de um ponto a outro: o emprego gerado numa economia é a vaga subtraída na outra.

Igual circularidade se observa no deslocamento dos passivos do setor privado para o Estado, após um longo ciclo de farra financeira.

O setor privado ‘ajustou-se’, diz o colunismo abestalhado de toxina neoliberal.

Sim, o ônus foi transferido aos governos. O caso mais ilustrativo é o do sistema financeiro norte-americano, que recompôs sua lucratividade repassando créditos podres ao Fed.

A relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas saltou de 78% para 105% desde 2008. Inglaterra, EUA, França, entre outros,  acumulam déficits fiscais de deixar o do Brasil no chinelo.

Em contrapartida, a participação dos salários no PIB global é declinante:  10% inferior à média dos anos 80.

Esse torniquete estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos de desenvolvimento com repartição de renda, como as implementadas na América Latina.

O Brasil é o caso mais exposto porque justamente foi quem chegou mais longe nesse processo.

Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população. Nada igual ocorreu na AL.

Atingido pela queda nos preços e no volume dos embarques de minérios e grãos, o país sofre também com a retração nos embarques de manufaturados, antes vendidos a parceiros latino-americanos, em idêntico apuro.

É nessa moldura que a direita brasileira opera o golpe nas próximas horas.

Chegou até aqui, entre outras razões, porque conseguiu impor o seu diagnóstico e sua pauta como referência dominante do debate sobre a crise vivida aqui e no resto do sistema capitalista.

Não é propriamente uma surpresa que as ideias dominantes de uma época sejam as ideias das classes dominantes.

Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas páginas de ‘A ideologia alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido destaque na luta de classes.

Mas o poder impositivo da agenda conservadora hoje no Brasil está sendo exercido de forma asfixiante.

Nessa esfera tudo se passa como se o golpe já fosse um fato consumado;  a sua etapa ideológica já tivesse sido concluída.

Pesquisas que aferem a eficácia do martelete midiático no imaginário social sancionam essa sensação.

As sondagens tem gerado reações de desalento e prostração no ambiente progressista.

Que a Presidenta Dilma tenha apenas cerca de 9% de aprovação depois de eleita há menos de um ano com 54 milhões de votos é um sinal eloquente do divisor em curso.

Para um conservadorismo derrotado quatro vezes consecutivas na disputa à Presidência da República, a hegemonia massacrante na luta ideológica equivale a um recadastramento histórico.

Ainda que fracasse –ou recue—no intento golpista nos próximos dias, um sucesso tão esférico nesse plano deixa-o, permanentemente, a meio caminho andado do bote final.

Esse é o problema de fundo cuja superação convoca o desassombro e a convergência progressista.

Se hesitar, o cadafalso repelido hoje repetir-se-á amanhã e depois, até o desfecho cobiçado pelas elites.

À medida que a política econômica adotada no segundo mandato da Presidenta Dilma sanciona o diagnóstico e legitima, ainda que de forma mitigada, a terapêutica, ela reforça essa recorrência.

É como se apontasse uma arma contra o próprio peito.

O julgamento das ditas pedaladas no TCU, na semana passada,  evidenciou essa dificuldade de se defender do algoz, sem romper o círculo de giz que ele traçou no chão.

Por que o governo não foi explicar, em rede nacional, o que a dita 'pedalada' representava de fato?

Ou seja, que a Caixa quitou o Bolsa Família em dia, sendo ressarcida em seguida pelo Ministério do Desenvolvimento Social.

Esse, o copo d’água a partir do qual o golpismo sustentou a tempestade durante dias e noites seguidos, até os 19 minutos da apoteose do senhor Augusto Nardes –ele próprio uma tocha em combustão na fogueira ética que representa.

Por que o governo não escancarou o golpismo intrínseco à ‘escandalização’ de uma operação contábil corriqueira? E na qual o governo é superavitário:  entre 2012/14, o saldo do Bolsa Família na CEF rendeu juros de R$ 89,5 mi e gastos de R$ 13,6 mi pelos dias deficitários.

Ou seja, deixou um saldo líquido de R$ 76 milhões na ‘conta-corrente’ do programa que, em 757 dias úteis, até o final de 2014, só ficou negativo em 72 dias.

Em debate promovido pelo Instituto Lula, na mesma semana em que o TCU se inscrevia na Liga dos Golpistas e o governo retrucava de forma burocrática, aceitando as regras do ardil, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, fazia uma advertência oportuna.

‘Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da sociedade com quem fez muito pouco’.

O governo da Presidenta Dilma não é, infelizmente, uma nota dissonante nesse padrão.

Na verdade, a negligência com a luta das ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano social que, todavia, não se traduziram em engajamento político correspondente de seus beneficiários.

O economista Márcio Pochmann que pioneiramente enxergou essa assimetria voltou a lembra-la na semana passada, em debate em Porto Alegre, promovido pelo Fórum 21.

‘Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde 2003,’ lembrou o economista que dirige a Fundação Perseu Abramo,  ‘mas não houve mudança na taxa de sindicalização no país: de cada dez destes trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’,  espeta Pochmann.

Os dois grandes instrumentos de dominação conservadora em qualquer tempo é a estrutura repressiva do Estado e a ideologia.

Marilena Chauí, que abrilhanta aulas públicas na contracorrente da rendição ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais (...) esse fenômeno’, prossegue Marilena,  ‘de manutenção (adoção) das ideias dominantes mesmo quando se está lutando contra a classe dominante é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante’.

Por isso ele dizia –sublinha a professora-- que, se num determinado momento, os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (...) e elaborar uma ideia do nacional que seja idêntica à de popular.

‘Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, uma outra, popular, que negue a primeira’, sintetiza Chauí.

Se quiser resistir à resiliência golpista, a Presidenta Dilma  – com apoio das forças progressistas--  terá que falar à Nação. Agora e com frequência crescente. E se desfazer em alguma medida, do redil de ideias e conceitos que faz seu governo agir – à beira do abismo-- como protagonista passivo, e mesmo ativo, de um enredo que não é o seu. E que o impele ao buraco do qual precisa se afastar.

A ver

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

“José Dirceu está sendo acusado por ser José Dirceu”

“José Dirceu está sendo acusado por ser José Dirceu”, afirmam advogados

O Jornal de todos Brasis
Jornal GGN -  José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil no Governo Lula, pediu ao juiz federal Sérgio Moro que rejeite a denúncia feita pelo Ministério Público Federal, que o acusa dos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Segundo os advogados de Dirceu, a denúncia é inepta, afirmando que há "ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva’. Também chama quinze testemunhas, entre eles Ricardo Pessoa, dono da UTC Engenharia e delator da Operação Lava Jato, e o ex-presidente do Peru, Alan Garcia.
A defesa do ex-ministro afirma, sobre a delação de Milton Pascowitch e seu irmão, José Adolfo, que "não é preciso ser muito inteligente para prever que certos delatores se aproveitariam do fato de terem tido relacionamentos comerciais lícitos (e naturalmente documentados) com a empresa do peticionário, para, escudados neste fato, lançarem o nome de Dirceu aos leões".
A Polícia Federal e o MPF dizem que Dirceu recebeu propinas do esquema de corrupção da Petrobras por meio de sua empresa. José Dirceu foi preso na 3a fase da Operação Lava Jato e está detido desde 3 de agosto.
Do Estadão
POR FAUSTO MACEDO, RICARDO BRANDT, MATEUS COUTINHO E JULIA AFFONSO

Advogados de ex-ministro da Casa Civil (Governo Lula), preso na Lava Jato desde 3 de agosto, afirmam que acusação é baseada em delações sem provas e que ele foi 'lançado aos leões'
José Dirceu, preso na Operação Lava Jato em 3 de agosto, pediu ao juiz federal Sérgio Moro que rejeite a denúncia criminal por meio da qual o Ministério Público Federal imputa a ele os crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Em resposta à acusação, o ex-ministro-chefe da Casa Civil (Governo Lula), por meio de seus advogados, sustenta a inépcia da denúncia e arrola quinze testemunhas, entre elas o empreiteiro Ricardo Pessoa, dono da UTC Engenharia e delator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, além do ex-presidente do Peru, Alan Garcia.
 
Em 104 páginas, os defensores de Dirceu buscam fulminar a acusação da força-tarefa da Lava Jato. Eles pedem que seja rejeitada a denúncia ‘tendo em vista a absoluta inépcia da inicial’. E, caso o juiz Moro não entenda assim, eles pedem que seja rejeitada a denúncia ‘por lhe faltar suporte probatório mínimo e idôneo (justa causa), reconhecendo-se a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva’.
 
A defesa é subscrita pelos criminalistas Roberto Podval, Odel Mikael Jean Antun, Paula Moreira Indalecio Gambôa, Luís Fernando Silveira Beraldo, Viviane Santana Jacob Raffaini e Jorge Coutinho Paschoal.
 
Os advogados alegam que a tese da acusação se vale dos delatores Milton Pascowitch e seu irmão, José Adolfo. “Não é preciso ser muito inteligente para prever que certos delatores se aproveitariam do fato de terem tido relacionamentos comerciais lícitos (e naturalmente documentados) com a empresa do peticionário, para, escudados neste fato, lançarem o nome de Dirceu aos leões.”
O Ministério Público Federal e a Polícia Federal afirmam que Dirceu, por meio de sua empresa, a JD Assessoria e Consultoria, recebeu propinas do esquema de corrupção instalado na Petrobrás entre 2004 e 2014. A denúncia diz que os valores direcionados a Dirceu chegaram a R$ 11,8 milhões e diz que a JD Assessoria era fachada porque não fazia efetivamente serviços de consultoria.
“José Dirceu está sendo acusado, por ser José Dirceu”, afirmam os defensores.
O documento é iniciado com o título “A crônica da morte anunciada”.
“Tudo era, de fato, muito previsível. Empurrar a Dirceu a responsabilidade e a autoria de fatos criminosos, nesse contexto, era tarefa fácil. Mais que isso. Aos olhos dos delatores, era moralmente pouco desconfortável: José Dirceu já estava destruído, preso por outro processo criminal. Milton Pascowitch e seu irmão, evidentemente não hesitariam em atacá-lo, ainda que para isso fosse necessário mentir, ainda mais quando em troca poderiam receber – como de fato receberam – benefícios.”
Os advogados desafiam.”A denúncia oferecida foi absolutamente prematura, e somente seria juridicamente viável, se estivesse alicerçada não apenas nas palavras de interessados réus colaboradores, mas também em indícios mínimos e válidos de autoria e materialidade delitiva. Por incrível que pareça, a inicial de duzentas e dez páginas, foi oferecida apenas quatro dias após o último termo de depoimento de Milton Pascowitch. Nenhuma investigação séria de suas alegações foi feita. Não houve sequer tempo hábil para tanto.”
Eles insistem, taxativamente. “Uma leitura cuidadosa da denúncia revela todo um exercício de palavrório, rótulos, e uso dos comandos informáticos “copiar e colar”, numa sistemática repetitiva que, no fundo se redunda, exclusivamente, às palavras de dois colaboradores: Milton Pascowitch e de seu irmão Jose Adolfo. Cabe, pois, a defesa, demonstrar que o que fez a acusação, neste caso, foi um exercício falacioso de poluir os autos com um confuso amontoado de palavras, procurando transformar documentos lícitos, rotulando-os de ilícitos, a seu bel prazer. O que sobra, no frigir dos ovos, são unicamente as palavras de (del)atores.”
Ao rebater os crimes atribuídos ao ex-ministro, os advogados assinalam. “O que fez a acusação neste tópico foi coroar seu festival de presunções não autorizadas, falta de descrição típica adequada, confusões, repetições e incongruências com a utilização de mais uma de suas técnicas para, de maneira falaciosa, buscar eximir-se de demonstrar os indícios de autoria e a prova da materialidade delitiva dos crimes imputados. Prometeu provar o que alegava no tópico futuro, e quando o tópico futuro chegou, disse que não ia provar porque deveria José Dirceu provar o contrário. De se relembrar, que a única oportunidade que lhe deu para que fosse ouvido, foi após sua prisão, sem franquear-lhe acesso a todos os procedimentos que hoje são mencionados na exordial.”
“E assim, sem dispor de indícios válidos de crime, imputou além do crime de organização criminosa e de corrupção, o crime de lavagem de dinheiro”, prosseguem os defensores. “E para provar a derradeira imputação, a de lavagem, mais uma vez, vale-se de presunções. Utiliza-se a documentação de relações jurídicas existentes e justificáveis (compra de bens e reforma de imóveis, por exemplo), presumindo, sem qualquer elemento válido, uma origem ilícita aos valores envolvidos.”
A defesa do ex-ministro diz que ele ‘nunca escondeu ter tido negócios com as empresas que hoje estão, por uma razão, ou outra, envolvidas no caso Petrobrás’. “José Dirceu sempre foi consultor de renome, o que era absolutamente natural, dada sua trajetória de vida. Conforme se viu, firmou contratos com diversas empresas dos mais diversos ramos de atividade. Daí a presumir que todos os contratos firmados com a empresa JD “serviram apenas como artifício para dissimular os repasses dos valores ilícitos decorrentes dos crimes antecedentes”, é um salto muito grande, verdadeiramente absurdo.”
Em outro trecho da resposta à acusação, os advogados de José Dirceu afirmam. “Não há, portanto, qualquer indício de que os valores decorrentes dos serviços de consultoria prestados pela empresa JD Assessoria, os quais foram devidamente declarados, seriam objeto de operações complexas de lavagem de dinheiro. É estarrecedora a inversão feita pelo Ministério Público Federal para transformar documentos que justificam relações jurídicas corriqueiras, em provas de materialidade delitiva do crime de lavagem de dinheiro.”
A defesa investe, ainda, contra a versão de que Dirceu indicou o engenheiro Renato Duque para a Diretoria de Serviços da Petrobrás – foco de propinas para o PT, segundo a Lava Jato. “Não é possível permitir que José Dirceu seja considerado autor de crimes tão graves, porque “há rumores” de que indicou Renato Duque para assumir o cargo de Diretor na Petrobrás, e porque “dentre os contatos de agenda de telefone apreendido com Milton, consta o de Dirceu.”
Os advogados repudiam a acusação da Procuradoria da República de que Dirceu seria o ‘instituidor’ do esquema de propinas. Destacam que o ex-gerente da Engenharia da estatal, Pedro Barusco, devolveu US$ 97 milhões que recebeu de propinas. “Ora, se já a mera suposição de que o peticionário teria participado da pretensa organização criminosa mostra-se enorme despropósito, totalmente absurda a asserção de que ele teria papel de proeminência, inclusive indicando e mantendo no cargo os agentes públicos que corruptos, se, conforme mais à frente se imputa, os valores, supostamente direcionados a José Dirceu (valor de R$ R$ 11.884.205,50) não chegam perto nem de 2% do montante desviado por Barusco. Tudo se resume às declarações absolutamente vagas e inverossímeis de Milton Pascowich, interessado em ver sua pena diminuída.”
“Logo se vê que a acusação percebe a fragilidade dos elementos que dispõe contra José Dirceu. Por isso, num exercício que muito se assemelha à máxima de Joseph Goebbles, no sentido de que ‘uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade’, passa a repetir fatos vazios a cada cerca de dez páginas.”
No caso de o juiz Moro determinar a abertura da ação penal contra José Dirceu, os advogados pedem perícia complementar e arrolam quinze testemunhas, sete delas residentes no Brasil e seis no exterior, entre elas o empresário mexicano Carlos Slim, do Grupo Telmex, ‘para quem José Dirceu prestou consultoria’, e o ex-presidente do Peru, Alan Garcia, ‘com quem José Dirceu se reuniu por pelo menos duas vezes quando esteve naquele país, nos dias 23 de janeiro e 26 de novembro de 2007′. Segundo a defesa, Garcia é ‘testemunha apta a demonstrar as relações políticas de José Dirceu no exterior, para a prospecção de negócios de seus clientes na JD Assessoria e Consultoria Ltda’.
O ex-primeiro ministro do Peru Jorge Del Castillo também foi arrolado. “As testemunhas residentes no exterior e ora arroladas são pessoas que, à época dos fatos, participaram diretamente de reuniões e compromissos realizados pelo peticionário naqueles países e poderão confirmar, portanto, que José Dirceu lá esteve para efetivar os serviços de assessoria e consultoria para os quais fora contratado. Deste modo, é indispensável a expedição de cartas rogatórias para a oitiva das testemunhas ora arroladas, sob pena de violação ao princípio constitucional da ampla defesa.”
A defesa chama também o empreiteiro Ricardo Pessoa, dono da UTC Engenharia, que fez delação premiada e citou quase duas dezenas de políticos como supostos beneficiários de recursos ilícitos.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Papa reza na ONU missa de 7º dia do neolibelismo

Papa reza na ONU missa de 7º dia do neolibelismo

publicado 25/09/2015
Teto, trabalho e terra!
papa francisco na onu
(Foto: Tony Gentile/Reuters)
Conversa Afiada reproduz histórico pronunciamento do Papa Francisco I na ONU, onde tratou:

- da reforma do Conselho de Segurança da ONU e do FMI para que sejam mais representativos;

- os programas do FMI sufocam;

- da exclusão social, como uma negação dos Direitos Humanos;

- os pobres são descartados, vivem do descarte e sofrem com o abuso do meio ambiente;

- teto, terra e trabalho para todos!;

- pregou a proteção aos descartados do Norte de África, do Oriente Médio;

- com a proliferação das armas nucleares, haverá as Nações Unidas pelo Medo;

- fez votos de que o acordo entre os Estados Unidos e o Irã dê certo;

- denunciou o narcotráfico, uma outra classe de guerra, que desmoraliza as instituições;

- o verdadeiro perigo está no homem, disse Paulo VI;

- e citou o poeta argentino Martín Fierro:

"se os homens pelejam entre si, os que estão fora os devoram".


Senhor Presidente,

Senhoras e Senhores,

Bom dia!

Mais uma vez, seguindo uma tradição de que me sinto honrado, o Secretário-Geral das Nações Unidas convidou o Papa para falar a esta distinta assembleia das nações. Em meu nome e em nome de toda a comunidade católica, Senhor Ban Ki-moon, desejo manifestar-lhe a gratidão mais sincera e cordial; agradeço-lhe também as suas amáveis palavras.

Saúdo ainda os chefes de Estado e de Governo aqui presentes, os embaixadores, os diplomatas e os funcionários políticos e técnicos que os acompanham, o pessoal das Nações Unidas empenhado nesta LXX Sessão da Assembleia Geral, o pessoal de todos os programas e agências da família da ONU e todos aqueles que, por um título ou outro, participam nesta reunião. Por vosso intermédio, saúdo também os cidadãos de todas as nações representadas neste encontro. Obrigado pelos esforços de todos e cada um em prol do bem da humanidade.

Esta é a quinta vez que um Papa visita as Nações Unidas. Fizeram-no os meus antecessores Paulo VI em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995 e o meu imediato antecessor, hoje Papa emérito Bento XVI, em 2008. Nenhum deles poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caracterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, superação de qualquer limite natural à afirmação do poder. Uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades.

A história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas, que festeja nestes dias o seu septuagésimo aniversário, é uma história de importantes sucessos comuns, em um período de incomum aceleração dos acontecimentos. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras aquisições em todos os setores do âmbito internacional das atividades humanas.

Todas estas realizações são luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos. Apesar de serem muitos os problemas graves por resolver, todavia é seguro e evidente que, se faltasse toda esta atividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades. Cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização.

Por isso, presto homenagem a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes setenta anos. Em particular, desejo hoje recordar aqueles que deram a sua vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação.

A experiência destes setenta anos demonstra que, para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objetivo final que é conceder a todos os países, sem exceção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões. Esta necessidade duma maior equidade é especialmente verdadeira nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises econômicas. Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento. Os Organismos Financeiros Internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência.

A trabalho das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar onipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efetiva distribuição do poder (político, econômico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois setores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e econômicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão.

Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente», por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a ação humana deve reconhecer e respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico» (Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção deste ambiente. Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas. Nós cristãos, juntamente com as outras religiões monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81).

O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo fato de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão econômica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente. Estes fenômenos constituem, hoje, a difundida e inconscientemente consolidada «cultura do descarte».

O caráter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a este respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes. A adoção da «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável», durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efetivos.

Todavia não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, mesmo se constituem um passo necessário para a solução dos problemas. A definição clássica de justiça, a que antes me referi, contém como elemento essencial uma vontade constante e perpétua: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efetiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenômeno da exclusão social e econômica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos.

A multiplicidade e complexidade dos problemas exigem servir-se de instrumentos técnicos de medição. Isto, porém, esconde um duplo perigo: limitar-se ao exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos – metas, objetivos e indicadores estatísticos –, ou julgar que uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios. É preciso não perder de vista, em momento algum, que a ação política e econômica só é eficaz quando é concebida como uma atividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e que tem sempre presente que, antes e para além de planos e programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se veem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer direito.

A fim de que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam atores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) –, que é assegurado antes de mais nada respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente.

Ao mesmo tempo, os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efetiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade do espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e os outros direitos civis.

Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação. Ao mesmo tempo, estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar o direito à existência da própria natureza humana.

A crise ecológica, juntamente com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana. As nefastas consequências duma irresponsável má gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder, devem constituir um apelo a esta severa reflexão sobre o homem: «O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza» (BENTO XVI, Discurso ao Parlamento da República Federal da Alemanha, 22 de setembro de 2011; citado na Enc. Laudato si’, 6). A criação vê-se prejudicada «onde nós mesmos somos a última instância (…). E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos» (BENTO XVI, Discurso ao clero da Diocese de Bolzano-Bressanone, 6 de agosto de 2008; citado na Enc. Laudato si’, 6). Por isso, a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher (cf. Enc. Laudato si’, 155) e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões (cf. ibid., 123; 136).

Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata atuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra» (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo) e «promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade» (ibid.) corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos.

Para isso, é preciso garantir o domínio do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental. A experiência destes setenta anos de existência das Nações Unidas, em geral, e, de modo particular, a experiência dos primeiros quinze anos do terceiro milênio mostram tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico.

O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Contrasta fortemente com estas afirmações – e nega-as na prática – a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares. Uma ética e um direito baseados sobre a ameaça da destruição recíproca – e, potencialmente, de toda a humanidade – são contraditórios e constituem um dolo em toda a construção das Nações Unidas, que se tornariam «Nações Unidas pelo medo e a desconfiança». É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.

O recente acordo sobre a questão nuclear, numa região sensível da Ásia e do Médio Oriente, é uma prova das possibilidades da boa vontade política e do direito, cultivados com sinceridade, paciência e constância. Faço votos de que este acordo seja duradouro e eficaz e, com a colaboração de todas as partes envolvidas, produza os frutos esperados. Nesta linha, não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional. Por isso, embora desejasse não ter necessidade de o fazer, não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu patrimônio cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão.

Estas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos. Nas guerras e conflitos, existem pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem. Seres humanos que se tornam material de descarte, enquanto nada mais se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.

Como pedi ao Secretário-Geral das Nações Unidas, na minha carta de 9 de agosto de 2014, «a mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas» e para proteger as populações inocentes.

Nesta mesma linha, quero citar outro tipo de conflitualidade, nem sempre assim explicitada, mas que inclui silenciosamente a morte de milhões de pessoas. Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenómeno do narcotráfico. Uma guerra «suportada» e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção, que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.

Comecei a minha intervenção recordando as visitas dos meus antecessores.

Agora quereria, em particular, que as minhas palavras fossem como que uma continuação das palavras finais do discurso de Paulo VI, pronunciadas quase há cinquenta anos, mas de valor perene. «Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade» (Discurso aos Representantes dos Estados, 4 de outubro de 1965, n. 7).

Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: «O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas» (ibid.).

A casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma reta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada.

Tal compreensão e respeito exigem um grau superior de sabedoria, que aceite a transcendência, renuncie à construção duma elite onipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e coletiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar» (ibid.).

O Gaúcho Martín Fierro, um clássico da literatura da minha terra natal, canta: «Os irmãos estejam unidos, porque esta é a primeira lei. Tenham união verdadeira em qualquer tempo que seja, porque se litigam entre si, devorá-los-ão os de fora».

O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta um crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo «todo o fundamento da vida social» e assim «acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses» (Enc. Laudato si’, 229).

O tempo presente convida-nos a privilegiar ações que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 223). Não podemos permitir-nos o adiamento de «algumas agendas» para o futuro. O futuro exige-nos decisões críticas e globais face aos conflitos mundiais que aumentam o número dos excluídos e necessitados.

A louvável construção jurídica internacional da Organização das Nações Unidas e de todas as suas realizações – melhorável como qualquer outra obra humana e, ao mesmo tempo, necessária – pode ser penhor dum futuro seguro e feliz para as gerações futuras. Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado interesses setoriais e ideologias e procurarem sinceramente o serviço do bem comum. Peço a Deus onipotente que assim seja, assegurando-vos o meu apoio, a minha oração, bem como o apoio e as orações de todos os fiéis da Igreja Católica, para que esta Instituição, com todos os seus Estados-Membros e cada um dos seus funcionários, preste sempre um serviço eficaz à humanidade, um serviço respeitoso da diversidade e que saiba potenciar, para o bem comum, o melhor de cada nação e de cada cidadão. Que Deus os abençoe!

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A imprensa e a desconstrução do Conhecimento

A imprensa e a desconstrução do Conhecimento, por Luciano Martins Costa

“Nunca leio jornais, apenas os folheio. A manchete basta como notícia, o conteúdo dela está sempre ultrapassado e é bem conhecido” 
(Connie Palmen, escritora holandesa , em “As Leis”, livro premiado com o European Novel of the Year Award, 1997)
Cap. 1
Os meios de comunicação estão destruindo o mundo real, pela imposição de simulacros que fantasiam a própria existência, e preparam o futuro de um consenso absoluto, cenário apropriado para o triunfo da estupidez. Ao aceitar o jogo dos meios eletrônicos, os jornais e as revistas renunciam à vanguarda do processo civilizatório e se submetem ao jugo da cultura pop. O avanço acelerado da Internet e a presença impositiva do computador no cotidiano da sociedade são apenas fenômenos naturais de ocupação física do vácuo deixado pelos meios escritos ao abdicar do seu papel. Hoje e daqui por diante, o meio será a mensagem, e a mensagem é a simulação. A nova linguagem criada pelo casamento do computador com a teletransferência total é um desafio mortal para a alma dos meios escritos: a reflexão. Isso porque somos condicionados à resposta imediata, à racionalização alimentada pelo impacto emocional da mensagem. É preciso, portanto, reinventar a linguagem do Jornalismo, tarefa que a Imprensa tradicional não pode, não quer e não tem qualificação para assumir. A Imprensa estará morta num prazo muito curto, a menos que busque o conflito, semeando a dúvida e o questionamento pela ação guerrilheira no coração do inimigo da civilização – a certeza. O conhecimento construído, diariamente, por meio das sucessivas edições de notícias, é na verdade um processo de manipulação da realidade que produz ficção. Por exemplo, a Imprensa prefere fazer escândalo com cada crime que move emoções do que acompanhar e procurar diagnósticos para a violência endêmica na sociedade, principalmente aquela praticada sistematicamente pelo aparato de segurança do Estado.
A desaparição do conhecimento na forma como nos é familiar, à última geração educada na linguagem escrita, acontece na proporção e velocidade em que os meios se confundem: o conhecimento está sendo substituído pelo entretenimento. O ser humano, quanto mais civilizado se considere, mais e mais se vê propenso a aceitar como real o simulacro de conhecimento que se propaga por todos os meios. Tornou-se consenso que se vive desde a década de 1980 em um universo pós-moderno, cuja característica fundamental seria a descaracterização dos signos. Os meios convencem o receptor de que é possível recriar os significados no exato momento em que a comunicação se processa, e que ele, receptor, torna-se autor individual de uma nova História ao participar dessa simulação gerada pela substituição progressiva dos significados por metáforas aleatórias. Contraditoriamente, a primeira simulação se processa no eixo da notícia, que é o veículo transcendental do conhecimento. Mais ainda do que a televisão, os meios impressos são os portadores eficazes dessa semiologia bizarra, tanto mais nociva quanto mais se crê na palavra impressa. A ilusão que os meios propagam, de que o indivíduo “informado” nesses termos tem mais valor na sociedade, corrói não apenas a realidade, substituindo-a por simulacros desconexos entre si, como, em conseqüência, vai despindo de significados o próprio discurso baseado na palavra. Esse processo, que consiste em representar e significar idéias inconscientes por meio de outras idéias inconscientes ou “conceitos de fantasia”, não apenas está na raiz do atual estágio de ignorância arrogante que transpira da maioria dos textos de Imprensa, como vai progressivamente transformando a própria palavra numa excrescência quase fisiológica. Nem a literatura escapa dessa maldição, na medida em que editores e escritores se sentem compelidos, às vezes prazerosamente, a aceitar e justificar rótulos e “tendências” selecionados segundo valores de momento. Nem se pode dizer que a imprensa seja refém ou vítima de uma revolução tecnológica que acelera as comunicações num ritmo jamais imaginado pelo senso comum. Não há, nunca houve, o alardeado conflito de meios: a Imprensa abdicou de sua alma, a qualidade de produzir reflexão, antes mesmo de a televisão ou a Internet serem tidas como ameaças ao negócio de distribuir informação pela impressão de palavras e imagens. A Imprensa é, antes de tudo, cúmplice e autora do processo que vem reduzindo celeremente sua relevância.
Cap. 2
Esse tráfico simoníaco das essências da comunicação humana está criando uma nova semântica em praticamente todos os idiomas em cujos territórios a Imprensa tem sido instituição culturalmente importante. Não apenas o computador e a Internet têm dado origem a uma linguagem específica, como decorrência natural de sua interferência nos modos de fazer registros e trocas e da necessidade de descrever o universo virtual: os agentes dos meios escritos, a quem competiria resguardar os valores e a semântica do mundo real, se antecipam e decretam o fim do substantivo. O êxtase da adjetivação nos lança no interior de um globo habitado por personalidades auto-referentes e eventos repetitivos, ambiente do qual a originalidade e a criatividade estão banidas, no qual o bobo-da-corte vale tanto quanto o rei, num simulacro de democracia em que o poder real se dilui na impossibilidade de se reconhecer interesses coletivos entre a multiplicidade dos desejos individuais e verdades eventuais. Vivemos, como antecipou nos anos 70 o filósofo transnacional Villén Flusser, o fim das relações interpessoais pela impossibilidade da caracterização dos interlocutores: as pessoas estão sendo substituídas pelos eventos. Segundo Flusser, ao colocar as pessoas em movimento constante, os meios dissolvem a individualidade a tal ponto que já não a reconhecemos senão sob a forma de notícia, ou de evento público. O evento torna-se simulacro de relação social, as emoções se banalizam, e já nem se pode falar em um movimento dialético dos tempos, uma vez que a teia de simulações não admite o compromisso com idéias. Falta-lhe materialidade e, no ambiente culturamente difuso que esse universo origina, tudo pode ser qualquer coisa. Basta que os meios o referendem, e aquilo que antes era banal se torna essencial, aquilo que era fundamento se transforma em banalidade. A especulação é tratada como ciência, o boçal é ungido sábio, a violência vira entretenimento Flusser gostava de destacar a diferença entre gesto e atitude como exemplos daquilo que denominava “movimentos-signo”, para ensinar aos seus alunos, candidatos a jornalistas, publicitários, cineastas, um princípio que considerava essencial para aqueles que pretendiam fazer parte do “povo do meio”. Para estes, o gesto seria um luxo que jamais se poderiam conceder. Para estes, o único movimento-signo aceitável seria a atitude, porque afirmativo e sempre carregado de um “significado ativo”. Jamais o gesto, jamais o movimento-signo vazio de ação. Certa vez, durante uma aula na Fundação Armando Álvares Penteado, Flusser derrubou uma mesa e quebrou seu cachimbo ao encenar, sem palavras, a diferença entre os dois movimentos. “Sob ditadura, alienar-se é subverter”, afirmou. O linguista Antônio Sodré Cancela Cardoso, autor de “(O) Culto Idioma”, propôs uma sintaxe de resistência contra a deterioração do Português nos meios de comunicação.
Ele decompõe os fonemas e os recompõe em novos significados, tomando como guia sua configuração gráfica e os sons que representam. Ele pretendeu formular um antídoto contra o empobrecimento da língua, oferecendo ao “povo do meio” um jogo pelo qual o ato de escrever se tornasse uma permanente remissão às fontes de cada palavra, ainda que essas origens pudessem ser reinventadas a cada ato de escrever. De certa maneira, a Imprensa se apropria perversamente do jogo proposto por Sodré Cardoso: o idioma é reinventado a cada edição, ao sabor dos eflúvios da moda, simulacro de ideologia nestes tempos de massificação. O compositor é semi-analfabeto? Não, trata-se de um reinventor da linguagem, ícone da liberdade contra os grilhões da gramática. O artista não estudou composição? Não, sua genialidade está exatamente na coragem de romper os limites do visível e propor uma nova pulsação para as tonalidades, e estamos conversados. Saiu no jornal, foi publicado na revista. Não haverá quem diga que o rei está nu, e, olhando de perto, não é grande coisa.
Cap. 3
A apropriação, pelos meios impressos, da linguagem e, em seguida, da elasticidade de valores da televisão, deu origem a um processo de banalização dos fatos sociais, que passaram a ser tratados sob o foco da emoção imediata e breve. O uso corriqueiro de expressões inadequadas pelos meios impressos ou a leviandade com que se apropriam de vocabulários de moda vem conferindo certo tipo de legitimidade à linguagem televisiva, da qual se espera efeito imediato de fácil assimilação e rápida disseminação, ao contrário da comunicação escrita, destinada a provocar reflexões e efeitos de longa duração. Além de causar uma desvalorização progressiva da linguagem escrita, pela superposição de significados, às vezes contraditórios, a uma mesma expressão, essa prática eleva à condição de formadores de opinião protagonistas cuja principal qualificação é justamente a falta de consistência opinativa.
Não que a Imprensa devesse ignorar a moda como fenômeno social ou assumir uma posição de Quixote contra os moinhos de vento da televisão e demais meios dedicados ao trato da imagem. Trata-se, pelo contrário, de manter na pauta os fatos ligados ao mundo do entretenimento, mas para buscar uma compreensão mais profunda das mudanças sociais provocadas e permitidas pelo ingresso de novos meios ao mundo da comunicação, sem, no entanto, abdicar do senso crítico. A credibilidade, que sempre foi a razão principal da relevância da Imprensa, se coloca sob risco quando os meios impressos se deixam “colonizar” pelos meios de imagem e som não apenas em termos de linguagem, mas por conseqüência, também em termos de valores. Ao assumir a celebridade, qualidade intrinseca dos meios televisivos, como valor superlativo e sinônimo incondicional de sucesso, a Imprensa não só promove uma distorção no seu próprio significado como empreendimento socialmente relevante, mas também gera nos profissionais formados sob o signo da TV uma tendência a buscar em primeiro lugar o destaque pessoal, antes mesmo das qualificações essenciais para um bom jornalista. Muitas carreiras construídas a partir dessa perspectiva já alteram o perfil profissional da Imprensa em muitos países. O repórter L. Bernstein, co-autor do livro “Todos os Homens do Presidente”, sobre o episódio de Watergate, tem feito referência a distorções desse tipo e à disseminação daquilo que denomina “valores Murdoch”, como referência ao jornalismo de muitos escândalos e pouca responsabilidade praticado por jornais “tablóides” como os de propriedade do empresário australiano Rupert Murdoch. Não por acaso, a onda de indignação contra os “papparazzi” acusados no caso da morte da princesa Diana acabou atingindo indiscriminadamente todos os jornais e a imagem pública dos jornalistas.
Na confusão gerada pela própria Imprensa ao falhar em seu dever de educar, ou de informar didaticamente, o público reage como lhe foi ensinado: genericamente, emocionalmente, devolvendo sob a forma de intolerância o que faltou de reflexão no processo de comunicação. O filósofo brasileiro Sérgio de Gouvêa Franco, embora militante cristão e, como tal, preso a uma análise que tem como pressuposto a prevalência de um processo civilizatório de iniciativa e fundamentação divinas, abre caminhos para a percepção desse fenômeno que poderíamos qualificar como de desconstrução da Imprensa. Em seu livro intitulado “Hermenêutica e Psicanálise na Obra de Paul Ricoeur”, Gouvêa Franco observa que, segundo Freud, Nietzsche e Marx, vivemos “em uma situação social que camufla, disfarça e esconde”, para em seguida oferecer uma parábola sobre os meios ao confrontar a notícia da morte de Deus com a realidade da permanência desse mesmo Deus depois de Zaratustra. O filósofo questiona, então, o portador da notícia, o autor da “reportagem”sobre a morte de Deus, com a lembrança de que a repercussão do fato noticiado obscurece a compreensão do próprio fato e com uma prospecção arqueológica das razões anteriores à notícia, que ficaram soterradas pelas interpretações decorrentes. A reflexão cabe na análise da Imprensa tanto mais quando se recorda que Ricoeur é também, lembra Gouvêa Franco, teólogo, educador e psicanalista: de todas estas fontes os meios de comunicação têm se apropriado para dar valor de credibilidade e atualidade ao que se publica.
Cap. 4
A apropriação de disciplinas ou de partes delas, prática comum na história dos meios de comunicação, ganha, com o processo crescente de massificação, proporções tais que se torna difícil encontrar os limites ou diferenças entre elas. A linguagem psicanalítica se mistura a expressões de linhas pedagógicas distanciadas nas perspectivas de tempo e das diversas realidades culturais, a teoria marxista se transforma em convenção inócua, a filosofia e a história desaparecem sob a avalancha de citações fora de contexto utilizadas para justificar opiniões tomadas a priori e sempre destinadas a reafirmar a irrealidade. Nesse ambiente sem paradigmas, pode-se questionar até que ponto as doutrinas e disciplinas que formam a história da evolução do pensamento humano têm contribuído de fato para o processo civilizatório, uma vez desconstruídas pelo meio. Ou, numa abordagem a partir do meio, está explícito que até o pensamento precisa ser referendado pelos meios para existir. Por mais que essa cultura mediática renegue o contraditório, não há como dissimular que sua essência é uma contradição: no ambiente em que se supõe predominar o liberalismo mais absoluto não há lugar para o livre-pensar. Só é reconhecível aquilo que traz ou foi precedido por suas próprias referências, no círculo acrítico que se formou. Nascida no berço do livre-pensamento, a Imprensa agoniza no leito politicamente correto do pós-modernismo, que insiste em chamar de pós-modernidade. O meio rejeita a idéia de uma História em curso, decreta o fim da ideologia e se deleita com a hipótese da perenidade que dura uma edição. Talvez porque seus agentes, incapazes de entender aquilo que não seja relatado linearmente, tenham necessidade de criar uma nova hermenêutica que dispensa a dialética e o controverso, pela qual se revela uma erudição feita de simulacros, mas ainda reconhecível no ambiente mediático sempre autorreferente. Na verdade, a circularidade desse sistema de valores remete a sociedade mediada de volta ao Renascimento, mais propriamente ao período do Idealismo, uma vez que a suposta ausência de preconceitos constitui de fato um predominante e fatal preconceito: o de que só existe aquilo que é noticiado. O aspecto religioso de que se revestia a criação artística na visão dos críticos idealistas se repete na era da massificação, quando tudo exige a unção do meio e o ritual da celebrização. Todas as qualidades desaparecem quando a celebridade se impõe. Depois que se torna célebre, todo fato, pessoa ou instituição perde as características de que era formado para se tornar grandiosa e simplesmente uma celebridade. Tudo se torna evento, e aquilo que era qualidade deixa de existir. Será preciso, daí por diante, justificar a permanência sob as luzes do meio com mais movimento, e sábio será aquele ser mutante que souber eleger entre os rótulos disponíveis aquele que justifique sua permanência entre os eleitos. Melhor: que o eleve à grandeza de musa, ícone, referência.
Um dos fenômenos que se pode prever nesse contexto é o sequestro do campo intelectual: a imprensa vai se transformar num sistema totalitário a determinar o que é válido ou não como arte, música, literatura, pensamento. Assim, se sua veia musical está seca, escreva um livro sobre sua veia musical. Deixe que digam, que pensem, que falem que se trata de uma biografia, depois escreva artigos e conceda entrevistas revelando que na verdade é pura ficção, ou que você acaba de inventar a biofictiografia, explicando que o trabalho artístico (já, então, ninguém duvidará de que se trata mesmo de arte) é uma expressão de uma idéia pré-existente. Se algum chato ainda se lembrar de que isso soa a teologia, não perca a oportunidade para fazer polêmica. Diga que você é pós-estruturalista e que na verdade seu livro é a desconstrução da sua obra anterior, que, reconstruída em uma expressão diferente, constitui uma obra nova e inovadora. Anuncie, então, seu novo disco, que, naturalmente, será uma referência ao seu livro. Só não cometa o pecado de confessar que sua veia musical estava vazia, que você gastou seu talento inventando movimentos, que você acabou se transformando em uma eventualidade e que perdeu importância: todos aqueles críticos que vivem na sua órbita irão odiá-lo por ter furado a pauta. Você se tornou uma unanimidade. Você está morto.
*Este texto foi produzido originalmente no dia 25 de fevereiro de 1998. Para os amigos que cobram novas manifestações de um ex-observador da Imprensa, um texto ensaiado em 1998 e atualizado em 2012.