quinta-feira, 3 de novembro de 2011

ESTABELECENDO O CONTRADITÓRIO


A primavera árabe pousou no Rio



Gostaria de partilhar com vocês algumas reflexões que fiz após longas conversas com Ahmed Bahgat, o blogueiro egípcio que recepcionei por uns dias aqui no Rio.


Taí o cara. É um egípcio bem original. Budista, ultra-conectado às novas tecnologias (é diretor nessa área, numa ong), não liga muito para ideologias convencionais. Convenceu-me de que Kadafi era mesmo um ditador insano, e que os jovens árabes não querem saber de bem estar ou segurança sem liberdade. Quanto à revolução no Egito, da qual ele foi um dos protagonistas (o flat onde mora inclusive fica na praça Tahir), Ahmed está bem desencantado, como era de se esperar. Tem medo das eleições, porque a tendência é que os muçulmanos ganhem a maioria das posições no Congresso e o país se torne ainda mais conservador. Foi o que aconteceu na Tunísia, por exemplo, onde ocorreram as primeiras revoltas da chamada Primavera Árabe. Por conta disso, ele já está até se preparando psicologicamente para sair do país, porque admitiu que não suportaria viver num regime islâmico.

Ahmed, que veio ao Brasil convidado pelo I Encontro Mundial de Blogueiros, fez muitas perguntas sobre a situação política no Brasil e confesso que fiquei um pouco envergonhado da mesquinhez de nossos problemas. Temos uma revista Veja, mas no Egito 60% da população está abaixo da linha de pobreza (hoje são menos de 10% no Brasil, e a presidente prometeu zerar este índice até o fim de seu mandato). Aqui temos uma mídia caluniadora e golpista, mas livre. No Egito, os meios de comunicação privados foram agredidos pelo Exército.

Enfim, Ahmed confirmou uma coisa que venho matutando há um tempo. É claro que todas as conquistas sociais que realizamos vieram da luta política, portanto esta não pode esmorecer nunca. Um país começa a decair justamente quando a sua camada intelectual perde o interesse pela política, deixando livre o terreno para todo tipo de pilantras e usurpadores. Entretanto, mais importante do que realizar a luta política em si é refletir sobre o que lutar, como lutar. Qual o foco?

O imbróglio com Orlando Silva me deixou bem irritado, e aí eu comecei a pensar: será que estou me tornando um sujeito rancoroso? Não é um pouco ridículo acoplar o seu bem estar espiritual à estabilidade política do governo?

Também pensei muito sobre o poder da mídia. Não estaríamos entrando numa guerra perdida? É disso que se trata: vencer a mídia? O que significa isso? Produzir a falência dessas empresas? As coisas realmente serão melhores se isso acontecer ou surgirão outros órgãos ainda mais degradados moralmente?

Por fim, a pergunta mais constrangedora, e que por isso mesmo devemos fazê-la corajosamente a nós mesmos: não seria positivo, para a democracia brasileira, termos uma pujante imprensa de oposição? Não seria ela uma garantia objetiva, contundente, contra possíveis desmandos governamentais? Certo que ela costuma fazer, tradicionalmente, campanhas sórdidas, fundamentadas em mentiras, em depoimentos de criminosos, em escutas ilegais, etc. Ela é vil, muitas vezes. Mas não seria uma espécie de mal como aquele de Mefistófeles, que engendraria o bem? É preciso admitir que esse argumento tem sentido, visto que o Brasil tem experimentado um desenvolvimento muito forte, em quantidade e qualidade, e justamente em paralelo à um movimento midiático cada vez mais oposicionista.

Não é uma coisa em que eu acredite, mas eu preciso questionar. A leitura de "Sobre a Liberdade", do Stuart Mill, mexeu comigo. Ele diz que a disputa aberta e transparente entre opiniões divergentes é a única maneira eficaz de consolidarmos a nossa própria opinião.

E agora estou relendo pela enésima vez A República de Platão. Há um personagem, chamado Adimanto, que faz uma brilhante defesa da injustiça, do egoísmo e da maldade, enfatizando que não era isso em que ele acreditava, mas que, justamente por não acreditar, ele gostaria de ver aquele discurso ser esmagado por Sócrates. Como não havia ninguém para defender aquele discurso entre eles, Adimanto mesmo o faz, porque conhecia os argumentos de seus adversários.

Em nossas discussões sobre a função da mídia no Brasil, temos o cuidado de ouvir o outro lado? Mais que isso, estamos prontos a ouvir o outro lado com respeito, boa vontade e, sobretudo, com disposição de entender? Sim, porque uma coisa é, de armas na mão, ouvir seu adversário, disposto a trucidar-lhe na primeira escorregadela. Outra é você procurar entender inclusive aquilo que seu adversário não conseguiu explicar direito. Isso é um autêntico e nobre debate democrático! Se não houver boa vontade, de ambas as partes, para ceder e mudar de opinião, se há somente sectarismo e rancor, então não é um debate democrático, mas uma guerra de posições. Não há armas físicas, mas há belicismo, e, com isso, danos psicológicos, humilhação e arrogância.

Tem um outro personagem na República, Trasímaco, de quem eu estou sempre encontrando cópias na internet. Ele aparece no início do livro I. Sócrates discutia tranquilamente com amigos sobre o significado do conceito de "justiça". Daí que Trasímaco se insurge. Transcrevo abaixo, porque o texto de Platão é uma delícia. No curso de Filosofia Política que estou fazendo, em Yale, o professor diz que muitos consideram a República o melhor livro já escrito no mundo.

Repetidas vezes, enquanto falávamos, Trasímaco procurara tomar parte na conversa, mas fora impedido pelos amigos, que queriam ouvir-nos até o fim. Durante a nossa pausa, após minhas últimas palavras, não pôde mais se conter; erguendo-se do chão, como uma fera, lançou-se contra nós, como para nos dilacerar.

Polemarco e eu ficamos apavorados; porém Trasímaco, elevando a voz no meio do auditório, gritou: — Que tagarelice é essa, Sócrates, e por que agis como tolos, inclinando-vos alternadamente um diante do outro? Se queres mesmo saber o que é justo, não te limites a indagar e não teimes em refutar aquele que responde, mas, tendo reconhecido que é mais fácil indagar do que responder, responde tu mesmo e diz como defines a justiça. E abstém-te de pretender ensinar o que se deve fazer, o que é o útil, proveitoso, lucrativo ou vantajoso; exprime-te com clareza e precisão, pois eu não admitirei tais banalidades.

Ao ouvir tais palavras, fui tomado de assombro e, olhando para ele, senti-me dominado pelo medo; creio até que, se não o tivesse olhado antes que ele me olhasse, eu teria ficado mudo)

Mas, quando a discussão começou a irritá-lo, olhei-o em primeiro lugar, de modo que consegui dizer-lhe, um tanto trémulo:

Sócrates — Não fiques zangado, Trasímaco, porque, se eu e este jovem cometemos um erro em nossa análise, sabes que foi involuntariamente. Pois, se estivéssemos à procura de ouro, não nos inclinaríamos um para o outro, prejudicando assim as nossas oportunidades de descoberta; portanto, não penses que, procurando a justiça, coisa mais preciosa que grandes quantidades de ouro, façamos tolamente concessões mútuas, em vez de nos esforçarmos o mais possível por descobri-la. Não penses isso de forma alguma, meu amigo. Mas eis que a tarefa ultrapassa as nossas forças. Por isso, é muito mais natural para vós, os hábeis, ter compaixão de nós do que testemunhar-nos irritação.

Ao ouvir estas palavras, Trasímaco soltou uma risada sardônica e exclamou: — Ô Hércules! Aqui está a habitual ironia de Sócrates! Eu sabia e disse a estes jovens que não quererias responder, que fingirias ignorância, que farias por não responder às perguntas ,que te fizessem!

Trasímaco afirma ter uma noção muito mais correta sobre justiça. Depois de alguns rodeios, ele a revela:

Trasímaco — Ouve, então. Eu digo que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte. Então, que esperas para me aplaudir? Vais-te recusar!

Trasímaco explica que o que entende como a força mais importante de uma cidade é o governo. Portanto, a justiça é aquilo que o governo decidir, seja numa tirania, numa oligarquia ou numa democracia.

Em seguida, Sócrates desconstruirá a afirmação de Trasímaco fazendo-o cair em contradição, como era seu hábito. No entanto, é bastante decepcionante ver Sócrates tentando derrubar seu adversário com pegadinhas dialéticas, em vez de se ater simplesmente ao argumento. O próprio Sócrates, no capítulo seguinte, admite que não estava satisfeito consigo mesmo, e que havia vencido Trasímaco sem apresentar uma argumentação verdadeiramente filosófica. Havia traído, portanto, a si mesmo. Após essa dolorosa mea culpa, confessa sentir-se desamparado diante das dificuldades que a questão se lhe apresenta. Mas, sob instâncias de seus pupilos, concorda em iniciar uma investigação dialética sobre a justiça, e aí tem início o livro, sendo o trecho anterior uma espécie de introdução.

Eu trouxe esse trecho para cá, porque tenho a impressão de que o debate em torno do problema da comunicação social no Brasil (e em todo mundo) está travado. A brutalidade do governo argentino contra a mídia privada daquele país é mostrada como se fosse um maravilhoso exemplo a ser seguido. Não é. Acho importante que os governos tentem resolver os dilemas da comunicação através de novas leis. Mas uma lei não produz justiça se não for uma lei boa, e não será boa se corresponder apenas à uma canetada chauvinista de uma autoridade. Se entendermos que os problemas da mídia devem ser resolvidos pela força bruta do governo, então estaremos repetindo os argumentos de Trasímaco, de que justiça é simplesmente a lei do mais forte.

O mau caratismo de meia dúzia de proprietários de jornais não é razão para legarmos a nossas futuras gerações uma legislação que corresponda a qualquer retrocesso em nossa liberdade de imprensa. Da mesma maneira, o mau gosto de meia dúzia de humoristas não pode ser usado para impormos mais regras do que já possuímos no campo da liberdade de expressão.

É importante conhecermos as legislações de outros países, mas com muito cuidado para não recairmos no velho preconceito de achar que tudo que vem de fora (sobretudo Europa e EUA) é bom.

O problema da mídia não seria antes um problema de caráter de alguns jornalistas ou donos de jornal, ao invés de um problema jurídico?

Com isso não estou dizendo que seja um problema menor. O problema moral muitas vezes é o mais grave num país.

No entanto, apenas um diagnóstico preciso poderá curar o que supõe-se ser uma doença.

Sim, admito que há uma doença. A mídia brasileira tem um poder desmesurado, muitas vezes nocivo ao bem comum. Há alguns pontos em que eu sou positivamente a favor de um controle por parte do governo, com apoio de entidades representativas da sociedade civil. Na questão médica, por exemplo. Com o crescimento populacional e o inchaço das grandes cidades, a comunicação se tornou vital para as políticas de saúde. Nisso, podia haver, se é que já não há, políticas severas de controle sobre o que se pode ou não publicar, embora mesmo nesse caso seja importante cuidar que seja um controle monitorado pelos diferentes poderes constitucionais (legislativo e judiciário) e entidades civis.

Por último, e mesclado a isso tudo, temos que pensar a internet não apenas como uma ágora política, mas também como uma grande vale de lágrimas, gritos loucos e manifestações bizarras. Com a doença de Lula, vejo que a situação se repete. A coleção de bizarrices anti-Lula igualmente não pode ser usada para se defender a criminalização da opinião, por mais esquizofrênica e homicida que ela seja. A internet criou um espaço de liberdade extremamente perturbador, com o qual teremos de aprender a conviver. Vejo muita gente acusando os outros de fazer apologia disso, apologia daquilo, e clamando por algum tipo de castigo. Ora, vamos ser sensatos e olhar para o estado de nossas repartições judiciárias e policiais! Os governos não conseguem resolver homicídios de verdade, imagine se os recursos forem dispersos para se combater abrobrinhas publicadas na internet!

Quando o sujeito publica uma insanidade na internet, isso não quer dizer que ele seja um crápula. Ele pode estar tendo problemas mentais (estou falando sério). Isso é muito comum e deve ser levado em conta sim. E se a pessoa tem problemas mentais, deve ser tratada com respeito, e não agredida ou linchada publicamente. Em suma, não devemos dar bola a todo tipo de comentário. Por um lado, é importante catalogar essas manifestações, para estudo e análise do comportamento social. Todos nós devemos estar mais ou menos atentos ao burburinho da internet. Por outro, entenda-se que muitas pessoas procuram justamente se exibir, e a repercussão de uma esquisitice apenas cumpre o objetivo doentio de seu autor.

O combate à bizarrice deve ser feito através da luta ideológica e da educação e não através da humilhação pessoal. A pessoa fala uma merda na internet, aí é perseguida por um bando de justiceiros travestidos de militantes políticos, perde o emprego, e quem sofre será o seu filho de dois anos que não tinha nada a ver com a história. Não sei se fica meio ridículo citar São Paulo, mas eu gosto muito da parte em que ele diz:

Portanto, és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo.
Romanos 2:1

Pois é exatamente isso o que acontece. Uma galera ficou julgando o Rafinha Bastos, mas aí eu vi que esses mesmos que se arvoraram em juízes do Rafinha diziam todo tipo de impropério na internet. Um sujeito ficou tão horrorizado quando eu retuitei uma piada onde constavam vocábulos pornográficos usados por Rafinha que teve um chilique e passou a me xingar pesadamente no Twitter. Ou seja, acusam Rafinha mas fazem o mesmo, ou aliás, fazem pior, porque o Rafinha fala suas merdas porque vive disso. Esses fazem de graça, por  simples falta de educação.

Então, Miguel, o que você sugere fazer? Nada? Então você é mesmo um reacionário!

Sim, eu sugiro fazer alguma coisa. Minha sugestão é incluir no currículo escolar obrigatório aulas de crítica midiática. Crianças e adolescentes devem aprender desde cedo a olhar a mídia de maneira crítica, tentando sempre separar o joio do trigo. Para mim, esta é a única solução. É uma bandeira positiva, construtiva. A bandeira contra a mídia é uma bandeira negativa, mais ligada uma ideia de destruição de que de criação. No fundo, os que levantam essa bandeira gostariam de repetir os gestos daqueles velhos sindicalistas da década de 30, que entraram nas redações de alguns jornais e destruiram-lhes as máquinas. A mídia privada é uma grande Matrix, que só venceremos através da conscientização política de cada indivíduo, um por um.

Uma coisa é você ler os jornais sem consciência crítica. Você se tornará certamente um imbecil. Outra é você ler devidamente municiado por outras fontes de informação: neste caso, poderá desfrutar talvez de uma leitura agradável durante seu café da manhã. Quando não estão engajados em campanhas histéricas de falso moralismo, os jornais trazem sempre alguma informação interessante. Você pode achar que a Folha só merece ser usada para forrar o chão da casinha de cachorro, mas não pode negar que é o jornal mais lido no país e a fonte de informação mais influente junto a políticos, juízes, advogados, artistas, etc. Traz entrevistas com as principais lideranças da política, com sumidades da ciência e da arte que respeitamos.

Não acho producente sermos maniqueístas. Não vamos chegar a lugar nenhum pressionando a esquerda a entrar numa cruzada moral contra a mídia. Isso só vai gerar prejuízos para todo mundo, porque todo mundo, de esquerda ou não, precisa da mídia para divulgar seus serviços, seus produtos, suas ideias.

Aliás, a esquerda deve participar do debate sobre comunicação social com muita humildade, porque a história já mostrou que a grande mancha do socialismo real foi - e ainda é - a repressão à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa. A China continua perseguindo artistas e livre pensadores, então ainda precisamos pôr muita água nesse moinho antes de pretendermos que uma nova lei da mídia irá resolver todos os nossos problemas políticos. A lei da mídia será feita de qualquer jeito porque as plataformas de comunicação estão no meio de uma grande revolução tecnológica. Mas será uma lei mais técnica do que política, e assim deve ser.

Como blogueiro progressista, eu acho que é muito mais construtivo, repito, defendermos uma mudança nos currículos escolares, introduzindo uma matéria de crítica midiática, e fazermos periodicamente grandes debates nacionais, com presença de nossos principais pensadores, sobre o que seria ensinado às nossas crianças, jovens e adultos. Deveria ser criada uma cadeira acadêmica voltada exclusivamente para o desenvolvimento de uma consciência midiática crítica em cada cidadão. Confesso que nunca gostei muito daquele lema do maio de 68, mas agora senti uma vontade imperiosa de citá-lo, até porque foi pela educação pública que os ideais da revolução francesa realmente se concretizaram em toda Europa:

Sejamos realistas, queiramos o impossível!

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