quarta-feira, 15 de abril de 2015

Por que não nos chocamos mais?



do blog da Milly
Três notícias me perturbaram essa semana, e a semana nem começou. Não porque elas tenham me surpreendido, mas justamente pelo efeito oposto; elas não surpreenderam muita gente.
A primeira foi a demissão de Claudio Carsughi da Jovem Pan. “É assim mesmo”, me dizem aqueles com quem reclamo que tem alguma coisa errada em demitir um homem de 83 anos depois de 60 de serviços prestados. “Esse é o jogo, faz parte. E ele vai ganhar um bom fundo de garantia”, explicam.
Não sei sobre o fundo de garantia, mas sei sobre a sensação de que tem alguma coisa estar errada numa demissão como essa. Entendo que legalmente ela faça parte do jogo, mas moralmente deveria ser inaceitável, e não é. “Relaxa, o sistema é assim mesmo”, me dizem.
Mas então será que não há alguma coisa fundamentalmente errada com o sistema?
Alguém que passa 60 anos trabalhando para uma mesma empresa tem o direito moral de perder o emprego aos 83 anos? Quem já foi demitido sabe que o fundo de garantia é bem-vindo, mas ainda assim não é capaz de aplacar a rasteira moral que vem com a demissão.
O problema é a gente achar que quem nos emprega está fazendo um favor, a gentileza suprema de nos dar a chance de comer e de pagar o aluguel e de comprar coisas à prestação no fim do mês.
Não é essa a relação por um motivo muito simples: se você conseguiu um emprego então isso significa que aquilo que você vai produzir, em bens ou serviços, terá que ser maior do que aquilo que você custa à empresa. Se não for assim, a não ser que você seja filho do dono, o emprego não será seu. Não é complicado assimilar a realidade se a gente entender o princípio básico do sistema: o lucro no menor espaço de tempo possível.
Então, se há um favor quem o faz é você ao empregador, permitindo alugar seu corpo e seu cérebro para que ele os use e lá na frente tenha um lucro com isso.
E, ok, não há muita alternativa a não ser aceitar as regras desse jogo, sobre o qual aliás pouco pensamos porque é assim desde que nascemos, mas aceitar as regras não quer dizer não perceber a relação, nem deixar de debatê-las, ou deixar de falar sobre a crueldade de um sistema que, a partir do momento em que aquele profissional não gera mais lucro, pode ser descartado como um detrito.
O ser humano usado como meio, e não como fim, tem sempre que gerar resistência e revolta, não é possível que não seja assim. Não nascemos para ser coisas, nem para ter liberdade e criatividade, duas de nossas essências, tolhidas em nome do lucro.
Não passou da hora de começarmos a pensar sobre a demência de um sistema que permite demitir faceiramente um homem de 83 anos depois de seis décadas de serviços prestados?
A segunda notícia foi a divulgação de um relatório que diz que a invasão do Iraque deixou um milhão de inocentes mortos, ou 5% da população.
Não vai dar no Jornal Nacional, nem no New York Times, mas o estudo, cujo link segue no final desse texto, é considerado o mais completo até hoje (dados oficiais falavam em menos de 200 mil mortos).
O número soaria absurdo mesmo se a invasão tivesse sido legítima, embora seja difícil legitimar qualquer ação imperialista, mas hoje, quando já sabemos que a invasão foi baseada em mentiras contadas pelo governo americano ao mundo, mentiras replicadas sem nenhum olhar crítico pela grande imprensa, incluindo aí CNNNBCABCNew York Times etc, tudo fica ainda mais chocante.
Então um milhão de inocentes morreram porque o país que se considera o dono do mundo saiu em busca de recursos naturais para que suas corporações possam lucrar mais e mais e tudo bem, não se fala mais sobre isso?
Da próxima vez que alguém falar que os horrores do comunismo assassinaram milhões, vale pensarmos sobre os horrores do capitalismo.
Quantos ainda perderão a vida por causa dele?, seja trabalhando como escravo e dormindo no chão de fábricas na China, ou adoecendo fatalmente depois de trabalhar por anos sob condições insalubres, ou morrendo de fome e de AIDS na África porque, embora haja dinheiro e cura para que essas pessoas não morram mais, não há muito como lucrar com elas então deixe que morram, ou inocentes vitimados em guerras lutadas em nome de mentiras.
E a terceira notícia foi contada pelo professor de economia Richard Wolff e diz respeito a uma nova lei aprovada pelo estado do Missouri, e que pode ser estendida a demais estados americanos.
Pela nova lei, os americanos que têm direito ao “food stamps”, um sistema federal que ajuda os muito pobres a comprar comida mensalmente, não podem mais adquirir biscoitos, crustáceos ou steak. Porque não basta ser muito pobre, é preciso comer o que a classe dominante quer que você coma – e biscoitos, crustáceos e steaks, francamente, não são alimentos para bico de pobre. Se soa fascista é porque é fascista. E, pior, já não ligamos mais.
Como não ligamos mais quando vemos conhecidos indo a passeatas comandadas por fascistas brasileiros e pedindo que o partido que ganhou a eleição na urna – a despeito de ser bom ou ruim – seja tirado do poder e, entre um uivo e outro, faça selfie com Bolsonaro, talvez o mais racista, homofóbico e intolerante político que já passou por essas bandas, e com a PM.
Pode espancar a panela quando a presidente fala, mas quando uma criança de dez anos é assassinada pela polícia com um tiro na nuca numa comunidade, ou quando a Sabesp, essa que levou São Paulo à seca (talvez não no seu bairro, mas na periferia certamente) divulga, como fez nessa terça-feira 14 de abril, que vai pagar 500 mil de reais de bônus a seus diretores, já tendo distribuído meio bilhão reais entre eles em 2014, todos se calam.
Será que não há alguma coisa errada com nossa passividade bovina diante da injustiça de um sistema como esse?
“Não é sinal de saúde estar perfeitamente adaptado a uma sociedade adoentada”, disse o indiano Jiddu Krihsnamurti. Então talvez estejamos irremediavelmente danados.

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