domingo, 8 de dezembro de 2013

Jornalismo nas sombras

Jornalismo nas sombras

8 de Dezembro de 2013 | 14:10 Autor: Miguel do Rosário
(Na foto, um jornalista da Folha matutando uma matéria sobre o trensalão).
(Na foto, um jornalista da Folha matutando uma matéria sobre o trensalão).

Lembro-me de um comentário de um parlamentar norte-americano, feito há alguns anos, sobre a relação orgânica entre a Fox e o Partido Republicano. O deputado, que era republicano, falou algo assim: “por muito tempo pensávamos que a Fox trabalhava para a gente, mas agora descobrimos que somos nós que trabalhamos para a Fox”.
Era um chiste corajoso e autocrítico, inspirado na constatação que a Fox havia se tornado o principal cabide de empregos para republicanos sem mandato. Todo republicano com alguma projeção, em alguns casos mesmo sem projeção nenhuma, não conseguindo se eleger, tinha emprego garantido na empresa de Rupert Murdoch.
O comentário também reflete uma tendência inexorável que se espraiou por todas as Américas: a transferência do núcleo decisório político do conservadorismo para empresas de mídia. Acontece nos EUA, contudo, em escala menos grave, porque os grupos de mídia norte-americanos, mesmo sendo muito poderosos e ricos, jamais foram os mais poderosos e os mais ricos do país. Hoje ainda menos. O que é a Fox se comparada a um Google? O que é um New York Times se comparado à indústria tecnológica?
No Brasil, é diferente. A família Marinho, proprietária das organizações Globo, detêm a maior fortuna do país. E não temos nenhum Google brasileiro para contrabalançar. E nossas indústrias não são tão poderosas assim. Por isso a mídia brasileira é tão sinistra: ela concentra poder, em proporção ao PIB nacional, numa escala que encontra poucos paralelos no mundo.
Sendo assim, não se pode acusar a nossa mídia de tucana. Não é a mídia que trabalha em prol do PSDB. É o PSDB que trabalha em prol dos interesses dos barões da mídia. O PSDB se tornou simplesmente braço político das “famiglias”. Só isso explica a perplexidade com que a nossa imprensa vem tratando o escândalo do cartel dos trens.
A Ombudsman da Folha não sabe mais o que dizer, coitada. Hoje, ela abre seu texto assim:
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Perder esse trem
Folha fica para trás na cobertura do cartel do metrô e enfrenta acusações de que protege o PSDB
“Coisa feia, hein, FSP? Sempre a reboque do concorrente ‘OESP’. Todo dia o ‘Estadão’ descobre algo e publica. A FSP apenas reporta. Das duas, uma: ou tem péssimos repórteres investigativos, ou não quer mexer com o P$DB. A segunda hipótese me parece mais certa.”
O comentário, postado no site da Folha na quinta-feira, resume uma cobrança que vem sendo feita quase diariamente ao jornal sobre a cobertura do cartel de trens e metrô em São Paulo.
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É quase impossível, porém, não simpatizar com o esforço quase heróico de Singer de andar no fio da navalha: criticar a empresa que lhe paga o salário e ao mesmo tempo manter o emprego. Num gesto de tocante franqueza, a própria Singer admite seu dilema:
Aos que me acusarão, ao final de leitura deste texto, de aliviar a barra do jornal, adianto que nenhuma Redação gosta de ver escancaradas suas deficiências em coberturas importantes. E essa, que envolve um desvio de dinheiro bem maior que o do mensalão petista, é uma delas.
O leitor vira a página com um pouquinho de esperança no jornalismo brasileiro. Afinal, ter consciência de seus próprios vícios é o primeiro passo para superá-los. Entretanto, na página seguinte, a Folha devasta brutalmente a impressão positiva que a postura autocrítica da ombudsman construíra. E ao mesmo tempo confirma, desavergonhadamente, o conteúdo da crítica. Ou melhor, mostra que a crítica da ombudsman pecou pela timidez. A coisa é muito mais grave.
matéria com a qual topamos em seguida é tão maliciosa que eu ousaria adjetivá-la de “satanista”. Intitulada “testemunha nas sombras”, visa apenas desconstruir uma das principais testemunhas contra o esquema dos cartéis de São Paulo. Uma tentativa sofisticada de intimidá-lo e, ao mesmo tempo, minar a sua credibilidade.
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Trecho da matéria:
Começa aí uma série de dúvidas que persistem até hoje. Por que ele escreveu essas acusações? Como sabia do suborno? Será que tem provas do que diz? O que ele quer?
As dúvidas são razoáveis. O sinistro é constatar que na mesma semana em que a Istoé divulga novas revelações do trensalão paulista, com informações bombásticas sobre pagamento de propinas a autoridades durante a gestão Serra, a única matéria publicada na Folha é um ataque à testemunha!
É muito saudável a presença de um ombudsman num jornal. No entanto, me parece frustrante que as críticas desse profissional se revelem completamente inúteis, e que o jornal, ao invés de aperfeiçoar suas práticas, piore-as ainda mais.

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