quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A ausência de Eric Hobsbawm



03 OUTUBRO 2012

Não, eu não sou o Nelson Motta


Hoje em dia, todo documentário da música brasileira, tem o entrevistado número um. Acertou quem respondeu Nelson Motta. Ele estava em todas! Passou por tudo. Virou figurinha carimbada, da Bossa Nova ao Tropicalismo, passando pelos festivais. Até no documentário do Raul Seixas lá estava o Nelson. Há quem diga, inclusive, que em algumas situações ele não estava lá coisíssima nenhuma...

Aqui no blog conto passagens históricas em que fui testemunha ocular. Mas longe de ser um Nelson Motta hehehe, apesar de ter participado de vários e muitos dos principais acontecimentos envolvendo a cobertura jornalística naquela que já foi a mais respeitada emissora de TV do país, quando ainda tinha um pouquinho de compostura.

Este preâmbulo é para dizer que, no início dos anos 90 do século passado frequentei a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Fui ouvinte do curso de História Moderna, a cargo do professor Nicolau Sevcenko. Suas aulas eram as mais concorridas da época. Sala lotada. Chamava a atenção, além do brilhantismo do mestre, seu penteado que escondia a careca e uma garrafa de coca-cola de dois litros pela metade e sem gelo. Suponho também àquela altura sem gás.


A memória daquele tempo veio inteira à mente hoje quando li a homenagem do mestre ao maior de todos os mestres, Eric Hobsbawm. Fiquem com o texto do professor Nicolau, na Folha:


"Era um evento regular, perfeitamente previsível. Três horas da tarde, o som de passos pesados começava a ecoar nos andares inferiores.

Aos poucos, à medida que avançavam, o assoalho todo começava a tremer. Plóf..., plóf..., plóf..., o ruído aumentava, a trepidação crescente fazia a xícara de chá tremular no pires.
De repente, num estrondo, a porta escancarava e aparecia a figura ofegante do professor Eric Hobsbawm, morto na segunda (1º) aos 95 anos.

Cara vermelha, olhos injetados, à beira de uma apoplexia. Havia vencido heroicamente os três andares através de uma escada estreita e íngreme, ingressando afinal no seu escritório, sala 33 da Tavistock Square nº 35, sede do Instituto de Estudos Latino Americanos da Universidade de Londres.

Vinha ao prédio de sapatos, mas trocava por um par de tênis especialmente reservado para a grande escalada. Chegando, levava alguns minutos para recuperar o fôlego, e logo se punha a trabalhar concentrado. Nunca se queixou do esforço.

Tive o raro privilégio de dividir aquela sala com o mestre entre fins da década de 80 e início de 90. Foram anos decisivos, o colapso dos regimes da Europa Oriental desafiava suas convicções e o melhor de suas energias intelectuais.

O telefone não parava: jornalistas, editores, intelectuais, ativistas, revolucionários, alunos, artistas, autoridades, gentes anônimas que liam seus artigos. Atendia a todos com a mesma atenção e paciência. Não tinha secretária.

Acabada a sessão telefônica, desconectava discretamente o aparelho e se dedicava a escolher dentre os livros recebidos aqueles que, como editor, distribuiria dentre os colaboradores da revista do partido para serem resenhados.

Depois, vinha o momento que eu mais ansiava: ele se punha a comentar os tais livros comigo, um mero pretexto para organizar mentalmente suas ideias, esboçando a edição da revista.

Gentilmente, me perguntava sobre o andamento das minhas pesquisas, fornecendo indicações preciosas, rebuscando dentre seu enorme acervo tudo o que considerava relevante para o desenvolvimento do trabalho. Não raro, me trazia livros de sua biblioteca pessoal.

Sua generosidade era espontânea e genuína.

Ele conhecia muito bem o objeto da minha pesquisa, a transformação cultural dramática de São Paulo nos anos 1920, tema do que seria o livro "Orfeu Extático na Metrópole". Havia ali uma crítica explícita a um modelo de política de massas que dissentia abertamente de suas concepções políticas.

Expondo suas críticas e discordâncias, ele me acossava como um grande mestre diante de um calouro num tabuleiro de xadrez. Mas jamais me deu o xeque-mate. Seu respeito pelos interlocutores era do tamanho da sua generosidade.

Divergindo, ele me ajudou e fertilizou meu trabalho como se eu fora seu dileto discípulo. Não era só comigo.

Quem entrava naquela sala tinha acesso imediato ao melhor da sua privilegiada inteligência crítica, sua erudição infinita e a inspiração da sua sólida integridade intelectual.

Num mundo de moralidade dissolvente e corrosão sistemática do conhecimento erudito, a ausência de Eric Hobsbawm soa como um colapso.

O mundo era maior e mais promissor na confusão criativa da sala 33, Tavistock Square nº 35, do que será agora, para sempre fora dela."

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