sexta-feira, 8 de abril de 2011

Luto eterno pela inocência perdida

Miguel do Rosário

Não tenho o que comentar sobre essa tragédia ocorrida no Rio. Nem acho que existam explicações satisfatórias. Para mim, é algo que emerge lá do fundo negro e diabólico da alma humana. A única resposta para isso é o amor, a arte, o carinho, a poesia. Não adianta culpar os filmes americanos, a internet, a mídia, o governo, a educação. Esses monstros surgem do nada, imprevisivelmente, nas melhores famílias. Nas cidades mais pacatas e nos países mais desenvolvidos. Infelizmente, um deles nasceu aqui.




Evidentemente, muitas besteiras serão ditas. Preconceitos vêm à tôna. Intelectuais darão opiniões apressadas, porque raramente admitem que não sabem, que estão tão perplexos como nós.



Não sei, realmente, o que dizer. Vou arriscar um poema:



nas entranhas, sufocado pelo sangue,

o verme se agita

sem amor, sem compaixão,

ele simplesmente se agita

e talvez gritasse,

se soubesse gritar



é quase isso, porém.

o berro de um verme

preso no meio das entranhas

ensanguentadas de uma criança



uma criança, meu deus,

tão linda como uma praia,

uma manhã de sol

de temperatura amena

e ar úmido

em frente ao mar sereno

o mar azul e livre

livre qual uma criança

sem entranhas

sem vermes

sem vida



falam em religiões,

em deus,

em doenças psiquiátricas,

mas esquecem do principal

das entranhas sujas

e dos vermes

estranhos que nelas

se debatem, ariscos,

quase felizes em sua agonia

de monstros em seu habitat



não haverá mais belas manhãs,

o Rio perdeu sua inocência

o Rio perdeu o amor

o Rio perdeu a esperança



A cidade se debruça

à bordo de suas montanhas,

vomita sobre todos nós

e depois chora

copiosamente.



chores também, você,

a sua vida perdida

o luto eterno

a morte que nos espreita

sem ligar se o dia é belo

ou se as meninas são belas



o rio morreu nesta quinta-feira

baleado na cabeça

por um psicopata filhodaputa

que pagará no inferno

dez milhões de anos

mastigado lentamente pelo próprio chefe

dos subterrâneos incendiados



inconsoláveis

acordaremos amanhã

semimortos

como zumbis,

e perambularemos pelas ruas

vazias de sentido

como quem vagueia

perplexo

por uma cidade destruída por uma bomba

e ainda cheia de radioatividade



vamos dormir então

por uns bons anos

tornarmo-nos alcóolatras

bater em nossos filhos

enganar os amigos

pois a moral e o amor já não tem sentido



expulsamos os anjos

do paraíso,

e os substituimos

por homens cínicos

e armados



as entranhas já estão corroídas

pelos vermes

pela tristeza

e pela maldade



adentremos o inferno,

as entranhas em fogo

o coração frio

sem ouvir os gritos



das crianças



sem ouvir nosso próprio grito

de desespero

e desesperança



mas depois fugiremos

de novo para cima

para a luz

e costuraremos o abdômem

rompido, por onde elas

as entranhas, nos escapavam



e talvez dormiremos

ao ar livre,

o coração batendo muito forte

por causa da fuga

e pela emoção também



de estarmos vivos

e sermos novamente pessoas boas

cidadãos notáveis

que culpam a mídia e o governo

e dormem um sono pesado

após a cachaça da terça-feira



mas acordarás de madrugada

para vomitar

assim como a cidade

vomita sobre você do alto dos picos da tijuca



então pegará os jornais pela manhã

pingando sangue, e na cozinha,

ralando cenoura e cortando o tomate,

esquecerás dos anjinhos

que nunca leram dante

as mocinhas bonitas

que podiam se tornar suas amigas

daqui a alguns anos.



concentrar-te-ás somente na faca

laminando o tomate

lentamente

cruelmente

eternamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário